Quando foi se justificar por também ter metido o pé na lama do Mensalão, o denunciador Roberto Jefferson disse que era impossível pretender que saísse um fio de água limpa do esgoto do sistema político nacional.
Ficou gasta por verdadeira, como toda expressão desgastada, que o Congresso é o reflexo da população. Não por ter quase que só brancos e poucas mulheres, mas por reproduzir nosso sistema de castas e de pensamento.
Ele traduziu sempre a nossa ética do jeitinho, a nossa condescendência com o mal feito, aqueles nossos valores de atravessar o sinal e querer molhar a mão do guarda. Como já se disse muito também, deputados não brotam como alfaces por geração espontânea nas cadeiras do Parlamento.
Em assim sendo, como querer que elejamos pessoas diferentes de nós? Como querer que elejamos repolhos e apareçam lírios nas bancadas?
Como querer enfim que elejamos Bolsonaros e não tenhamos bolsonaros? Como eleger a ética de Bolsonaro e não ter a ética de Bolsonaro?
Ética parlamentar
O recente episódio sobre a movimentação suspeita do assessor do filho Flávio na Assembleia Legislativa do Rio remete a uma prática bem típica dos parlamentares do Congresso, das Assembleias e das Câmaras de Vereadores brasileiras.
O deputado nomeia servidores em cargos de livre nomeação sem concurso (Recrutamento Amplo) com a condição de que devolvam parte do que recebem.
Em grande parte dessas casas, a verba é de mais de R$ 100 mil mensais a ser distribuída por um mínimo e um máximo de servidores, por valores a critério do parlamentar.
Ele pode nomear, por exemplo, 20 servidores com salário individual de R$ 5 mil ou 10 por R$ 10 mil cada ou até mesmo 5 para receber R$ 20 mil.
Já se cogitou de casos em que o servidor é nomeado apenas por alguns meses, no tempo necessário apenas para usufruir de determinado tratamento médico oferecido pelo cargo. Na operação de troca, recebe o tratamento e devolve o salário.
No caso do deputado Flávio Bolsonaro, eleito senador, as últimas revelações sugerem que sete servidores possam ter sido nomeados com esse objetivo.
A arrecadação era centralizada no assessor, motorista e segurança de confiança Fabrício Queiroz, com o cuidado de receber depósitos e fazer saques em cash. Por algum descuido, recebeu parte em transferência eletrônica e sacou parte em cheque.
Numa conta rápida com que desconfiei da operação, em minha página no Facebook, estimei que o desvio deve ser de R$ 600 mil, considerando que, na movimentação de R$ 1,2 milhão em um ano, R$ 600 mil entraram e R$ 600 mil saíram. A média de R$ 50 mil mensais é bem compatível com o ganho médio de seis a sete assessores ou está dentro de suas possibilidades de devolução.
Crime e ética de oportunidade
A coisa é tão velha e sabida a boca pequena que é sintomático que nenhum deputado ou senador, ético ou não, tenha se apresentado na mídia para condenar o mal feito descoberto pelo Coaf na esteira da prisão de sete deputados cariocas.
Não é surpresa para ninguém do mundo político do congresso, da representação e do país que temos.
Como não deveria ser também da militância nas redes sociais, a postos para ressuscitar a comparação entre o bolsonarismo e o petismo. Pronta para medir o denegrir o grau de desonestidade do lado adversário.
Com a previsível falta de senso e imparcialidade.
É muito curioso ver apaixonados do lulopetismo, antes resistentes a acreditar em primeira hora de qualquer prova contra Lula, se apressarem para formular teorias abrangentes para embrulhar a família toda e o chefe, claro, no indício de corrupção.
Em igual medida, não faltam bolsonaristas ansiosos por desconsiderar as provas de pronto e tentar desqualificar o trabalho do Coaf, na tentativa vã de blindar seu mito das tentações terrenas.
Em ambos os casos, a cruel dificuldade de entender seus mitos como humanos do mesmo barro que passa pelo esgoto do sistema político, de que falou o filósofo Roberto Jefferson.
Que, como nós, relativizam o mau feito, condescendem com os pequenos desvios, como se não fossem determinantes para o resultado final.
Na ética do sistema onde Lula e Bolsonaro nasceram e cresceram, o crime só não acontece por falta de oportunidade. Lula teve as suas. Bolsonaro algumas, poucas, até onde se sabe.
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