Ainda impressionado com Democracia em Vertigem e os elogios que vem recebendo da imprensa internacional, me pergunto por que a direita seria incapaz de fazer um filme desses.
Minha primeira resposta é que o homem de direita, conservador e individualista, não tem a crença infantil de um mundo idealizado muito comum no homem de esquerda.
De espírito coletivo, ele tende a humanizar os líderes de luta, os pobres e os marginalizados, os anti-heróis, e a demonizar os ricos, a movimentação de bastidor, os que exercem outro tipo de liderança para conquistar o poder dentro das estruturas.
Humaniza-se um Lula, mas não um Temer. Humaniza-se um José Dirceu, mas não um Delcídio do Amaral. Humaniza-se uma Dilma, mas não uma Kátia Abreu. E o faz sem medo, consciente de que está do lado ideal, do lado que é bonito estar, independente do caráter e dos resultados.
Não é que a direita não seja capaz de ser parcial também, como foi no documentário 1964, recente. Mas que o homem de direita, conservador e individualista, tende a ser mais racional e a buscar explicações mais estruturais e menos idealistas. Menos poéticas, digamos. É um material que serve pouco a obras de arte, que operam com herói idealista na busca de realizar seus sonhos.
Como já se disse muito, é obrigatório ser de esquerda aos 20 anos, mas é estupidez continuar sendo depois dos quarenta.
Grande cinema em favor dos seus
Os lulistas vão amar, os bolsonaristas vão odiar, mas os que forem capazes de distanciamento crítico e espírito desarmado, como tento, vão achar grande cinema.
A cineasta Petra Costa, filha de guerrilheira amiga de Dilma Rousseff e neta dos fundadores da Andrade Gutierrez, faz um inventário poético de suas decepções com o país, a partir da ascensão e queda do mito em que ela e sua mãe depositaram todas as ilusões de juventude.
Partindo do fato de que tem os mesmos 33 anos da jovem democracia brasileira, acompanha Lula desde seu nascimento até suas decepções de juventude e mulher adulta, num encadeamento vertiginoso de grandes imagens públicas e privadas a que só ela teve acesso. Desde 2014 privou da intimidade do Palácio da Alvorada e das movimentações de Lula dentro do sindicato do ABC, onde esticou a corda até onde pôde, com emocionante apoio popular, antes de de ser preso.
É um documento simpático a Lula e, como todas as obras em favor dele, passa de raspão pelas denúncias de corrupção. Não aparecem Roberto Jefferson, José Dirceu e Joaquim Barbosa, figuras cruciais do período.
Mas ela faz um relato honesto o tanto quanto possível a serviço de seu projeto sentimental, fazendo referências vagas à corrupção e às alianças de seu líder com as oligarquias políticas e do capital a que seu avô pertenceu. Acaba por fazer um balanço convincente das más escolhas que eles empreenderam, que contribuíram para a derrocada do país e de suas esperanças.
E produzir também uma denúncia da hipocrisia no mundo político, que só vi em igual dimensão no grego Costa Gravas, autor dos emblemáticos Z e Desaparecido, que desnudaram respectivamente os horrores de uma rede de corrupção política na Grécia e da repressão de Pinochet na ditatura chilena.
Com alta carga dramática, mirando nas derrocadas pessoais do próprio Lula e da própria Dilma, que se confundem com as da cineasta, com ondas de pico nos momentos em que os acompanha nos intestintos do Palácio e do sindicato, vivendo na carne seus últimos momentos na vida pública.
(Impressionante a frieza, quase ironia, com que ela deixa o Palácio conversando com Jaques Wagner após a votação do impeachment, que deveria ser o momento mais traumático de sua vida.)
É um grande drama, que as simpatias políticas de quem fez e de quem analisa podem infelizmente obscurecer.
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