Primeiro, quem é Syd Fied?
Syd Field, morto em 2015, é considerado por alguns o pai do roteiro de cinema moderno.
Roteirista e produtor, criador de séries de sucesso nos anos 60, ministrou cursos que influenciaram importantes cineastas e em que se gestaram alguns grandes filmes da década de 80.
Seu Manual do Roteiro, de 1979, um clássico entre os profissionais do ramo, é um passeio saboroso pelos grandes filmes dos anos 70 – Chinatown, Um Dia de Cão, Três Dias do Condor, Rocky, Rede de Intrigas, entre outros – que ele toma como exemplo para esclarecer seu método.
Não inventou nada. Ao ler e resumir mais de 2 mil roteiros para a Cinemobile Systems, sistematizou o que via como padrão nos 40 melhores que indicou para produção.
Estabeleceu a estrutura básica que desde então virou letra de fogo no cinema americano.
Foi acusado de engessar o roteiro, mas sua concepção de estrutura ainda não foi questionada a sério e é indispensáel no aprendizado dos mecanismos de escrita criativa. E os pontos de virada que estabeleceu são perceptíveis no início e no final de qualquer história de superação.
Os três Atos e os Pontos de Virada
Descobriu que a maioria dos roteiros eficientes para envolver o telespectador tinha três atos bastante definidos – o de Apresentação, em que se apresentam o personagem, sua premissa e seu problema; o da Confrontação, em que enfrenta os problemas; e da Resolução, que encaminha a solução
E cunhou a expressão Ponto de Virada para marcar a passagem do primeiro para o segundo e deste para o terceiro ato. Os Pontos de Virada 1 e 2 determinavam os dois incidentes cruciais de mudança que enganchavam um ato no outro e empurravam a história para frente.
Alguns filmes podem ter vários pontos de virada, mas ele carimbou esses dois como indispensáveis: o primeiro em que o herói sai de sua zona de conforto e vai a luta e, o segundo, em que vence em parte a sua guerra e encaminha a solução.
Dividindo o roteiro em três Atos e dois Pontos de Virada:
Ato I, Apresentação – Em que se apresenta o personagem em seu ambiente e se acena com algum acontecimento que vai tirá-lo de sua zona de conforto e jogá-lo em novo mundo. Termina no…
Ponto de Virada 1 – Em que um acontecimento muito relevante o empurra, querendo ou não, para outro mundo e seus perigos.
Ato II, Confrontação – Em que se desenrola a maior parte do ação. Ele vai enfrentar todas as dificuldades, que vão se complicando até chegar ao fim do Ato II e o…
Ponto de Virada II – Em que alguma ação marcante vai sinalizar para a possibilidade de solução.
Ato III, Resolução – Em que se desenvolve a solução, ainda que com alguns percalços.
Sua definição lhe pareceu tão clara e indiscutível, que ele chegou a criar um modelo matemático, para delimitar os tempos de cada Ato e até mesmo o momento cronometrado em que os Pontos de Viradas deveriam ocorrer.
Assim, o Ponto de Virada I deveria ocorrer aos 25% da trama, que ele determina como um ponto entre a página 25 e 30 do roteiro escrito (uma página por minuto). O Ponto de Virada II, aos 75%, entre as páginas 85 a 90.
Num filme de 120 minutos, estariam, respectivamente, entre 25 e 30 minutos para a primeira reviravolta e, aos 85 a 90 minutos, para a segunda.
Ele tinha tanta convicção do método que dissecou em cursos, que chegou a recomendar claramente no seu clássico Manual do Roteiro:
“Da próxima vez que for ao cinema, veja se pode localizar os pontos de virada do Ato I e Ato II. Todos os filmes que você vir terão pontos de virada definidos. Tudo o que você tem a fazer é achá-los Perto dos 25 minutos de filme um incidente ocorrerá. Descubra qual é, quando ele ocorre. Pode ser difícil a princípio, mas quanto mais exercitado mais fácil se torna. Confira no seu relógio.”
E mais dois:
Alguma Coisa vai Acontecer e o Fundo do Poço (ou a Alavanca de Saída)
Os estudiosos que mergulharam depois em seus estudos descobriram outros pontos marcantes, ou pontos de virada menores, que ajudavam a encaminhar a história para os Pontos de Virada principais.
Aos 10% (ou 12 minutos, no caso), alguma coisa menor acontece e sinaliza que algo pior vai acontecer no Ponto de Virada 1. Aos 50% (60 minutos), na metade do filme, o herói está no fundo do poço, sem saída, mas descobre uma alavanca, uma alternativa, um gancho que lhe sinalizará a escapada que o conduzirá ao Ponto de Virada II e à solução.
Em meus estudos, eu percebi outro ponto também no meio do Ato III, de Resolução, a 10% do final do filme, correspondente aos 10% do primeiro. É o momento em que algo também acontece, só que mais grave, como espécie de última provação. Não para sinalizar a solução, mas último percalço e outra forte experiência para reforçar a catarse ao final.
Em resumo:
- Alguma coisa acontece, aos 10% (12 minutos de um filme de 120)
- Ponto de Virada I, aos 25% ou fim do Ato I (30 minutos de um filme de 120)
- Fundo do Poço, aos 50% ou meio do Ato II (60 minutos de um filme de 120)
- Ponto de Virada II, aos 75% ou fim do Ato II (90 minutos de um filme de 120)
- Outra coisa acontece, aos 90% (110 minutos de um filme de 120)
Veja os exemplos nos vencedores do Oscar
Seguem os exemplos nos três premiados do Oscar 2014, melhor filme e roteiro adaptado (12 Anos de Escravidão, de Steve McQueen), melhor diretor (Gravidade, de Alfonso Cuarón) e, como nos interessa mais de perto, melhor roteiro original (Her, direção e roteiro de Spike Jonze.).
Interessante perceber que o método se encaixa tanto numa forma convencional de contar uma história (caso de 12 Anos) quanto numa inovadora, como o sensacional Gravidade, em que o drama da heroína é do exato tamanho da sessão de cinema e da angústia do telespectador em acompanhá-la.
Curioso também notar que incidentes – ou viradas – podem também ser bons e que o herói, ao invés de chegar ao fundo do poço, no meio do filme, pode chegar ao ápice de uma conquista. Onde, ao invés de caminhar para o enfrentamento e a solução, mergulha num declínio para um fim – embora ele não queira – inevitável.
Como vai se ver em Her. Nesse roteiro originalíssimo, em que o roteirista consegue convencer de que é possível se apaixonar pelo sitema operacional de um computador, o herói vai dar suas reviravoltas em direção à felicidade, mas caminhará para uma resolução que pode não ser necessariamente boa.
Para quem não viu os filmes, é necessário alertar que aqui quase se contará o final.
Um negro livre sequestrado como escravo vai ter que descobrir uma forma de denunciar sua situação, em 12 Anos de Escravidão
Solomon Northup, negro livre e músico bem sucedido, casado, vida estável e filhos, é sequestrado e vendido como escravo no sul cruelmente escravocrata dos EUA. Vai penar 12 anos até conseguir denunciar seu drama e voltar para casa. Duração de 120 minutos.
10% (12 minutos)
Alguma coisa acontece – Primeira experiência forte
Ele é dopado pelos homens que se apresentam para contratá-lo e que irão vendê-lo. Acorda amarrado em correntes.
25% (30 minutos)
Ponto de Virada 1 – Entrada em novo mundo
No navio em que é transportado para o sul junto a outros escravos presencia o assassinato de um escravo rebelde, perde seu único companheiro e admite enfim que está só e que a única saída é obedecer para ir em frente.
50% (60 minutos)
Fundo do Poço e alavanca de saída
Recebe chibatadas no tronco por ter tido o pior desempenho na colheita do algodão. O proprietário violento vai se engraçar com a catadora mais produtiva, a jovem escrava vivida pela ganhadora do Oscar de coadjuvante, Lupita Nyong’o. Espécie de alavanca com abre a segunda parte da história.
75% (90 minutos)
Ponto de Virada 2 – Encaminhamento da solução
Ele confia a um branco que trabalha de empreitada a entrega de uma carta que comunicaria à família sua situação. Vai ser traído, mas não vai desistir.
90% (110 minutos)
Outra coisa acontece – Última provação
Antes da redenção final, o proprietário se vinga por sabe que ele protege a jovem escvrava e o obriga a chibatá-la no tronco.
Uma astronauta precisa domar sozinha a nave que vai levá-la de volta para casa, em Gravidade
Ryan Stone, engenheira em missão de conserto de um telescópio no espaço, perde parte de sua nave, o restante da tripulação e o contato com a Nasa, após o choque com destroços de um satélite russo. Sozinha, vai ter que aprender a dominar o equipamento para voltar à Terra. Duração de 80 minutos.
10% (8 minutos)
Alguma coisa acontece – Primeira experiência forte
Sinal de alerta para a engenheira voltar para dentro nave e primeiro destroço do satélite russo passa próximo.
25% (20 minutos)
Ponto de Virada 1 – Entrada no novo mundo
Cabo se despreende e seu companheiro, mentor e principal apoio, vivido por George Clooney, se perde no espaço.
50% (40 minutos)
Fundo do Poço e alavanca de saída
Perde completamente o contato com a Nasa e se descobre o risco de ficar sem oxigênio. A descoberta do manual de operação para começar a se virar sozinha é a alavanca que vai encaminhá-la para o Ponto de Virada 2.
75% (60 minutos)
Ponto de Virada 2 – Encaminhamento da solução
Consegue contato com uma emissora de rádio, se anima e usa o manual para corrigir o problema de falta de oxigênio interno e desacoplar as naves para voltar para casa.
90% (72 minutos)
Outra coisa acontece – Última provação
Se quiser voltar para casa, ainda tem que saltar de um módulo para outro, no vazio do espaço, com a ajuda de um extintor de incêndio para calibrar o voo.
Um solitário em busca o amor impossível vai ter que considerar o rompimento, em Her
Theodore, romântico escritor de cartas de amor em computadores, sozinho depois de um casamento desfeito, encontra consolo na relação com a voz de um sistema operacional inteligente. Vai-se apaixonar mas terá que se confrontar com as impossibilidades desse tipo de relacionamento. Duração de 120 minutos.
10% (12 minutos)
Alguma coisa acontece – Primeira experiência forte
Numa espécie de feira de informática, fica sabendo da existência do Sistema Operacional, SO, que pode lhe suprir a solidão.
25% (30 minutos)
Ponto de Virada 1 – Entrada no novo mundo
Depois de alguma resistência e já integrado à ideia à princípio absurda, interage com a SO num dispositivo móvel, como num passeio de namorados. Compartilham gargalhadas enquanto ela lhe dá as coordenadas geográficas do caminho.
50% (60 minutos)
Fundo do Poço ou Ápice, no caso. E alavanca para começo do declínio
Está no ápice da alegria, já convive e conversa com sua SO em público. Mas a nova namorada quer saber do reencontro com a ex-mulher, para assinatura do divórcio, que vai abrir um confronto e a segunda parte da história, em direção ao declínio e à decepção inevitável.
75% (90 minutos)
Ponto de Virada 2 – Encaminhamento da solução
Eles se reconciliam após uma briga, mas pouca convicção. Há uma tomada de consciência de que a relação não tem futuro.
90% (110 minutos)
Outra coisa acontece – Última provação
Eles rompem, quando ele descobre que ela se relaciona também com outras 8.360 pessoas e que ja se apaixonou por 641.
Como diz Syd Field, se você é do ramo e pretende escrever roteiros sedutores, da próxima vez que você for ao cinema, não esqueça o relógio.
P.S. – Outra forma muito interessante de entender o impacto dos mecanismos de envolvimento nos filmes é o conceito de jornada do herói.
Foi estabelecido a partir dos 12 passos da formação de um mito, com base num livro definitivo sobre o assunto, O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell, ampliado em A Jornada do Escritor.
Este livro de Christopher Vogler é fruto de sua adaptação da jornada para o cinema, num memorando para a Disney que deu base para os campeões de bilheteria dos estúdios, a partir de então. Como Rei Leão, A Pequena Sereia e Matrix.
Deixe um comentário