Desde a instalação do governo Bolsonaro, anotei pelo menos sete irrelevâncias que tomaram tempo e energia do pensamento intelectual brasileiro.
- O direito de homens e mulheres ao uso do azul ou do rosa, respectivamente, na concepção da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.
- A Guerra Fria entendida como terceira guerra mundial pelo ministro da Marinha, Ilques Barbosa.
- A relação entre arma e liquifificador na elaboração do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.
- O papel histórico do ambientalista Chico Mendes, conforme o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
- O canibalismo brasileiro em viagens, à luz das concepções do ministro da Educação, Ricardo Velez Rodrigues.
- Os hábitos heterodoxos do presidente de comer pão com leite condensado, bater continência para civis ou comer em bandeijão.
- O confronto entre deputados do PSL e o filósofo mentor do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho, sobre a conveniência de uma visita à China.
No sábado, quando a pendenga da ajuda humanitária aos famintos da Venezuela derivou para as comparações do ministro das Relações Exteriores com o regime da Coreia da Norte, concluí que a entronização das redes sociais como o espaço por excelência do debate público pode estar derretendo os neurônios da intelectualidade.
Mais que isso, colocando em cheque o que se entende como pensamento intelectual e o papel de seu intérprete na vida nacional.
Intelectuais já foram farol da humanidade, a casta que gastava tempo, paciência e neurônios para aprofundar o conhecimento de quase tudo, de forma a ajudar os homens de seu tempo a entender a razão de ser e estar aqui, de onde vimos, onde estamos, para onde vamos. O espírito do tempo.
No tempo anterior à internet, por mais antenados ao noticiário de rádios, jornais e revistas, vinculados quase sempre a universidades, eram chamados “formadores de opinião”. No sentido de que havia uma casta que formava para uma multidão desinformada.
Com a internet, as redes sociais e o poder de qualquer um estabelecer autoridade a partir de sua experiência ou sua indignação, esse intermediário entre a informação e o grande público vem perdendo, se já não perdeu, o sentido.
É a era da irrelevância, como cunhou o pesquisador do Insper e curador do programa Fronteiras do Pensamento, Fernando Schüller, num artigo redondo para a Folha de S. Paulo, que inspirou este.
Ele lembra a badalada expressão do supra intelectual Umberto Eco, de que a internet deu voz em pé de igualdade ao imbecil da aldeia, para inferir que pode estar acontecendo o inverso.
Que o intelectual, antes portador da verdade, pode estar se transformando no idiota da aldeia.
Explicando a meu modo: à medida que o nível do debate desce e ele se agacha para ficar do mesmo tamanho dos likes, vai incorporando a praxis da grande massa das redes que se descobriu com competência para construir o conhecimento junto com ele.
Num de seus vídeos de sucesso no Youtube, o filósofo Leandro Karnal, que estuda as implicações da União Europeia há 40 anos, foi acusado por um jovem de 16 que de estar “falando besteira”.
Esse jovem, que no modelo pré internet deveria estar na aldeia de Eco estudando para ser alguém e adquirir autoridade em pelo menos um assunto, já se acha alguém com a mesma capacidade e plataforma disponível para pontificar as ideias que ainda não tem.
Eu já descrito o fenômeno no artigo Como comunicar na era pós-digital da distração e da deslealdade, a partir de seus impactos no mundo do marketing.
Shüller vai contudo na reflexão sobre os maus impactos dessa miséria na qualidade do debate político, que, “por óbvio, afeta a escolha pública”.
Quanto mais toxina ideológica espalhamos por aí, mais perdemos tempo e capacidade de gerar consensos e fazer as coisas que importam andar pra frente.
Folha de S. Paulo, 21/1/2019
A segunda notícia é que se trata de um estado de coisas que veio para ficar. O modus operandi das mídias sociais contaminou a todos, a liderança política, os intelectuais e (ao menos boa parte) da mídia profissional.
E mais: fez com que o eleitor, agora transformado em um ativista digital, passasse a se comportar como um pequeno político, usando da retórica e reproduzindo, um a um, todos os vícios que ele vê nos políticos contra os quais esbraveja.
Daí, para o intelectual brasileiro começar a publicar fotos de crianças, gatinhos fofos, pescaria e pés descalços à beira-mar ( “tá duro, viu?”), é questão de dias. Eu, que já fui intelectual, já comecei.
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