Nos últimos anos de vida, Frank Sinatra decidiu fazer uma turnê pela Europa para exorcizar de vez seu ressentimento com a conhecida má vontade dos europeus com sua obra. Teve que mandar comprar ingressos para não cantar em salas vazias.
Paulo Francis, o jornalista ácido que produzia comentários não menos azedos no Jornal da Globo, resumiu:
— Como todo mafioso que se preza, Sinatra quer o reconhecimento público na velhice. — Para concluir: — Merece, por outros motivos.
Lembrei disso, mais pelo ressentimento que pelo mafioso, quando confirmei que o bispo Edir Macedo anda comprando ingressos para Nada a Perder, a sua autobiografia autorizada e exaltatória.
É o único filme que se mantém em mais de uma sala nos principais cinemas depois de quase um mês de lançado, enquanto todos os outros entram e saem rápido de cartaz.
São cenas curiosas. De repente, não mais que de repente, em cima da hora, chega um grande grupo de pessoas compenetradas e deslumbradas, vestidas como quem vai ao culto, não fosse o clima de excursão de quem chega pela primeira vez num cinema. Reúnem-se, fazem selfies, um deles se mostra líder, dá algumas orientações, e formam enfim a fila que faz sentido a campeões de bilheteria.
Na última quinta-feira em que decidi entrar, a tela de computador da bilheteira indicava que as seis melhores fileiras de 12 cadeiras, no meio, estavam vendidas. Quase a metade da lotação de 150 lugares.
Lá dentro, faço companhia a outras quatro pessoas fora dessa marca e certamente desse credo, quando chegam não mais que 20 para ocupar as vagas. No mesmo jeito de excursão, de certo deslumbramento com o ambiente, de selfies antes de sentar.
A história melodramática e bem feita de suas provações e superações intenta na verdade responder às acusações de práticas controversas da Igreja Universal do Reino de Deus, que ele transformou em em 30 anos num gigante planetário de 6 mil templos em 105 países, 15 mil pastores e 8 milhões de fiéis, uma das maiores organizações religiosas do país e 29a. do mundo.
No clímax do filme, em que come o pão que o diabo amassou para viabilizar a compra da TV Record, contra a pressão em contrário do establishment religioso e político, ele apela a Deus em oração:
— Não é para mim, meu pai, não é para mim.
A tese nada subliminar é a de que todos os investimentos no aparato que construiu, desde a compra do primeiro horário de rádio, têm a finalidade de evangelização, de propagar “a sua palavra, meu pai”. E não, como acusam seus críticos, de se utilizar os fartos benefícios fiscais da atividade religiosa para ampliar seus tentáculos para outros negócios.
Sabidamente, restringe a guerra que lhe trava a Igreja Católica e o Ministério das Comunicações do governo José Sarney, no final dos 80, à denúncia de charlatanismo que resultou em sua prisão por 11 dias, em maio de 1992, gancho e fecho do filme. Ainda que tratado de forma genérica e como plataforma para seu discurso — perante o juiz parcial e a plateia — de que é perseguido apenas por pregar a palavra de Deus e fazer diferença na vida das pessoas.
Não foi bem assim. No início dos 90, quando sua Igreja já tinha saltado do nada para dominar 30% do monopólio da Igreja Católica, ele era combatido duro pela imprensa em cima de provas reais de venda de indulgência à custa de curandeirismo e extorsão.
Tinha virado pilhéria em personagens de Chico Anysio e Tom Cavalcanti. Uma minissérie da Globo com Edson Celulari no papel de um pastor corrupto parecia construído em cima de sua história. Viralizaram, digamos assim, um vídeo arrasador em que ele ensinava manhas a pastores para ampliar a arrecadação de seus templos e outro em que um de seus pastores chutava uma imagem de Nossa Senhora Aparecida.
O jornalismo mais sério dos jornais investigava seus negócios cruzados e as manobras suspeitas para ampliar seu parque de comunicação, que chegou a editora, gravadora, portal de notícias, 76 emissoras de rádios e mais emissoras próprias que a Rede Globo.
As críticas arrefeceram e seus acusadores recuaram, até os comediantes, quando se estabeleceu que tinha de fato influência. Contribuiu muito para isso seu avanço também tentacular na seara política, na produção em série de vereadores, deputados e prefeitos, por apoio indireto ou através de partido próprio. Impôs respeito, influência e poder através de bancadas evangélicas fortes dentro de parlamentos estaduais e do Congresso.
O esforço não reduziu, porém, o preconceito que ainda lhe move o establishment jornalístico, mal disfarçado no caminhão de denúncias que sufocou o lançamento em São Paulo, há quatro anos, do Templo de Salomão, um portento de 72 mil metros quadrados e lugar para 10 mil fiéis de qualquer credo, inaugurado com pompa com todo o establishment político.
Como que para melhorar sua imagem além do seu rebanho, pretendeu um templo que não tem dono, sem placa da Universal. Um tipo de pirâmide como as outras que ele veio plantando para reduzir o preconceito e projetar sua obra para a posteridade, de que o filme Nada a Perder parece ser mais um exemplar.
Me surpreende que um estrategista como esse, que construiu praticamente sozinho esse império desde que deixou as aulas de matemática para arrastar sua caixa de som nas praças, em doses cavalares de resiliência, ainda precise de tão pouco e precise pagar tão caro para se fazer ouvido.
A quem quer conquistar, se os ingressos para quem distribui caem nas mãos de pessoas já suficientemente convencidas de sua história e de seu esforço?
Que ilusões tem de que sua mensagem, mistura de fé e autoajuda, vá encontrar repercussão num tipo de público que sabidamente torce o nariz para seus métodos?
Por que e pra que o cinema para expandir em salas restritas o que pode fazer, como já fez, em estádios?
Minha resposta mais óbvia é que só pode ser vaidade, aquela que Al Pacino no grande O Advogado do Diabo diz que é seu pecado favorito. “Vanity, definetly my favorite sin”. Ou a que devorava Frank Sinatra no fim da vida, ressentido menos por ter sido visto como mafioso do que por não ter conquistado todos os rincões do mundo.
Edir Macedo, ressentido menos por ter sido visto como charlatão, quer ser amado na velhice por alguém mais além do seu rebanho.
Como diria Paulo Francis, merece, por outros motivos.
É um brasileiro importante, que construiu uma obra estupenda, que tem relevância na vida de milhões de brasileiros não só pelo serviço de salvar almas mas também pelo trabalho social pouco conhecido.
Nada a Perder tenta remeter à ideia de que nada poderiam lhe tirar se nada era seu. Mas sua angústia por se fazer ouvir por método tão primitivo e de eficácia duvidosa, que dá a impressão de que, sim, ainda tem muito a perder.
Pelo menos no que diz respeito à sua imagem.
PS – Ah, o ator que o interpreta, Petrônio Gontijo, é sensacional. Se Edir Macedo não foi assim, deveria ter sido. E a menina que faz a companheira de sofrimentos, Ester, Day Mesquita, é uma graça de singeleza e profissionalismo.
A política de José Dirceu
Um acontecimento a longa entrevista de José Dirceu a Monica Bergamo, na Folha de S. Paulo de sexta-feira. Dá para entrever a alma revolucionária do homem que, comandante em chefe do PT, ajudou a plasmar certo sentido que se dá à prática política que o partido trouxe para a vida pública brasileira. A saber:
- Vai para a cadeia com impressionante tranquilidade, com a consciência de quem tem um papel político a cumprir.
- Relativiza as acusações de propina com a tese de que o dinheiro que fez foi para manter sua atividade política, e não para uso pessoal.
- Está convencido de que ele e o universo dos movimentos sociais que apoiam o lulismo estão do lado certo da história.
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