Suponhamos que o novo presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, também de origem humilde como Lula, tivesse optado por uma carreira política. Mesmo tendo se formado advogado, começaria a advogar para sindicatos, se candidataria a diretor, saltaria para vice-presidente e depois presidente de um sindicato poderoso onde organizaria grandes mobilizações.
Com sua incontornável rigidez moral, que não comporta concessões de qualquer espécie, se daria bem a ponto de daí saltar para uma carreira de deputado, senador e, quem sabe, presidente da República?
Em princípio, não. Ninguém chega a lugar nenhum na vida política – e em certa medida na empresarial – sem fazer barganhas, alianças e compromissos. Lula é tido como quem tem um prazer especial de se sentar numa mesa de negociações, no sindicato ou no Congresso, e embarcar no xadrez de convencimento, trocas, avanços, recuos e dissimulações que ela comporta. Para chegar onde chegou, começou negociando – e fazendo concessões – com os companheiros do ABC, passou pelo empresariado que peitou nas maiores greves da história deste país e chegou aos coronéis do nordeste.
Numa segunda hipótese, poderia fazer carreira política sem ser candidato e sem sair de onde estava. De assessor jurídico de um sindicato, pularia para a defesa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, passaria para a CUT, chegaria a assessor de algum graduado da República e acabaria nomeado para o STF por trocas políticas, como Dias Tóffoli.
Ambas hipóteses parecem não se aplicar no seu caso, porque sua rigidez sem concessões, mesmo para com os amigos que o nomearam, não lhe permitiria trilhar esse caminho. Sua chegada ao topo do poder no Judiciário se deu por sorte, pela confluência de sua carreira brilhante e sua cor pelo interesse do presidente Lula em indicar um negro para a Corte. Se fosse branco, com a mesma carreira e mesmo utilizando relações políticas com amigos do presidente, certamente não teria a mesma sorte.
Esse “determinismo retroativo”, cunhado pelo jornalista da The New Yorker, Malcom Gladwell, que se mete a reconstruir o passado sem considerar outras tantas variáveis, não serve para a nada e não leva a lugar algum. Mas onde quero chegar é que homens intransigentes como Joaquim Barbosa só são promovidos em sistemas onde a disputa, a troca e a barganha não são determinantes. Ou que privilegiam, antes, o rodízio, a tradição e a longevidade.
Como o Judiciário, onde só se entra por concurso e só se é promovido por tempo. Juízes não disputam cargo, não têm hierarquia, não aceitam ordens, não precisam cortejar nada além de suas consciências e se aposentam com salário vitalício. Seria ingênuo achar que, lá dentro, também não existam manobras políticas para promoção dos mais amigos ou dos mais espertos. Mas o sistema é construído de tal forma que, se não chegarem a lugar algum do topo do poder, por rodízio, idade ou morte, acabam muito bem aposentados aos 70 anos.
Políticos têm em geral bronca dos juízes porque, diferente deles, precisam se submeter a um vestibular caro e complicado a cada quatro anos para se manterem no cargo. Não passam da próxima eleição se não fizerem concessões, que seja um sorriso, até para o padeiro da esquina. Não conseguem funções importantes dentro do poder, obras do governo ou patrocínio empresarial para as próximas eleições se não venderem o voto. Não gozam férias durante o recesso, porque não há como ser político sem sê-lo por 24 horas, e suas aposentadorias, proporcionais, dependem de um instituto próprio.
Melhor pensar assim: se entrasse para um sindicato, Joaquim Barbosa não passaria de assessor jurídico. Não por suas qualidades, mas pela sua dificuldade nata de fazer barganhas. Se fizesse, crescesse, saltasse cargos e chegasse ao topo, não seria Joaquim Barbosa.
Chegando lá, a presidente da República, por exemplo, seria diferente de Lula? Conseguiria sobreviver sem fazer concessões desabridas com os políticos, os empresários e diabo a quatro, que é a pauta do poder nesse país das capitanias hereditárias?
Bom. Aí cabe uma outra longa discussão, que tem a ver com governantes maiores ou menores, estadistas ou políticos, homens de espírito público ou mequetrefes. Os grandes, os estadistas e os de espírito público, de ilibada rigidez, como se sabe, conseguem negociar no varejo sem perder de vista um projeto de nação.
Como eu disse no meu livro O Dossiê Rubicão sobre Tancredo Neves, o estadista que não tivemos pela morte prematura,
“o que o diferencia dos demais de sua classe é a capacidade de sobrepor as grandes causas às miudezas, uma visão de mundo às contingências da hora, um projeto de longo prazo às mesquinharias do curto. É um otimista cínico que parece saber o valor de uma nomeação de uma professora e conhecia como poucos as fraquezas de seus semelhantes, mas que também sabe conjugar o varejo com o atacado e sobrepor à miséria de seus semelhantes as grandezas de seu espírito e de sua visão do mundo”.
Ser bom político neste país atrasado passa por isso. A Joaquim Barbosa talvez faltasse o jogo de cintura necessário. A Lula, para o bem ou mal, talvez mais para o mal, parece ter sobrado.
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