Os roteiristas ingleses casam narrativa épica em três Copas com a saga do país miserável que precisava superar o complexo de vira-lata
Já escrevi que futebol não dá boa ficção, no artigo sobre a jornada do herói em que cito o fracassado Fuga Para a Vitória, de nada menos que John Houston com Pelé, sobre um time instado a jogar sob o nazismo para disfarçar uma fuga.
A tese era de que o heroísmo diluído em um grupo não tem a tensão do herói solitário que encara seu destino, que está em toda grande literatura, em livros ou no cinema.
O sensacional do filme Pelé, lançado pela Netflix agora em fevereiro, não é só ter isolado o herói da glória de um time e de um país, mas de ter conseguido criar tensão de ficção num documentário.
Você não precisa se interessar por futebol ou ser do time que questiona a majestade do rei do futebol para se envolver e se encantar.
Embora documentário, o roteiro sagaz constrói uma uma narrativa épica que mistifica o herói menino que assombra o mundo aos 17 anos e vai ao fundo do poço, de onde se reergue com vingança para convencer o mundo de que não houve e nunca haveria outro como ele.
Os ingleses Ben Nicholas e David Tryhorn fizeram quase um drama de ficção que abarca o arco dramático que vai do desafio de enfrentar as Copas de 1958 e 62 até a derrota dramática de 66, de onde luta para se reerguer até a redenção gloriosa de 70.
— Eu não estou morto! Eu não estou morto! Eu não estou morto! — grita ao final de sua última Copa, sobre os ombros da multidão de brasileiros e mexicanos que o carregam em delírio pelo gramado do estádio Azteca, em Guadalajara.
Como já não há o que acrescentar ao jogador que teria até interrompido uma guerra na Nigéria, decantado em tantas outras obras documentais ou de ficção, os roteiristas optaram pela construção dramática do mito.
Contribui fortemente terem emoldurado essa jornada de herói dos trópicos, que ganhou o mundo, na saga do país miserável que precisava superar o complexo de vira-lata, de que falava o teatrólogo Nelson Rodrigues.
O país ainda não havia superado a derrota para o Uruguai na final da Copa de 50, dentro de casa. E, como se sociologizou à época, era um bando de pobres mulatos recalcados tentando que encarar no pé os brancos de olhos azuis da Suécia.
Cenas e depoimentos muito bem encadeados, de jornalistas, políticos e sociólogos, além de técnicos e jogadores, claro, encaixam na sua história de superação a do próprio país em busca de superação e redenção.
(FHC, como sociólogo, puxa a tese apoiada por um time de comentaristas que incluem, entre outros, o jornalista Juca Kfoury, a política Benedita da Silva, o compositor Gilberto Gil.)
Para construir esse mito, é notável a garimpagem preciosa de imagens (algumas inéditas) e áudios da época, da vida pessoal, dos treinos e dos momentos marcantes definidores de sua mitologia em campo.
— Foi autor dos não gols mais famosos do mundo — diz Juca Kfoury sobre sustos fabulosos que provocou em goleiros à longa distância.
Chega ao didatismo de congelar uma cena dele sozinho diante de um paredão de marcadores na grande área, no 1×0 difícil contra a Inglaterra, em 70, para demonstrar na resolução a técnica, a intuição, a criatividade e a argúcia que o explicam.
— É por isso que ele é o maior jogador do mundo — vaticina o narrador apaixonado ao som da torcida em delírio, que, espantosamente, incluía os ingleses.
Coisa de filme, de conflito, enfrentamento e superação, que perpassa o documentário, embalado por narrações apaixonadas de locutores do mundo inteiro, tão responsáveis, quanto as imagens, pela carga dramática.
Precisava mesmo parar em 70, como decidiu parar o roteiro. Para plasmar um mito que se confunde com uma época e um país. Que não teria como superá-la depois disso.
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