Resenha de Falando com Estranhos, de Malcolm Gladwell, mostra como somos péssimos de detectar mentira e os perigos da má interpretação.
Amanda Bland, uma negra imponente de 28 anos, recomeçava a vida feliz depois de conseguir um emprego na Universidade de Praire View, a uma hora de Houston, no Texas.
Estava deixando para trás uma fase de fracassos e de depressão em Chicago, que contava a seus seguidores no seu canal de sucesso no YouTube.
— Bom dia, meus lindos reis e rainhas. Estou acordada hoje simplesmente louvando a Deus, dando graças ao Seu nome. Agradecendo-Lhe não apenas por ser meu aniversário, mas pelo crescimento, pelas diversas coisas que Ele fez em minha vida neste último ano…
Em menos de uma semana na cidade, no início de julho de 2015, foi abordada na estrada do entorno da universidade por um policial branco de uns 30 anos, Brian Encinia, por não ter sinalizado seta ao mudar de pista para o acostamento para onde ele a forçou dirigir.
Ela se recusou a apagar o cigarro e a sair do carro, porque, segundo as imagens recolhidas pela câmera do carro da polícia, se achava vítima. Fora o próprio policial a induzi-la ao erro, ao pressioná-la na traseira para mudar de pista. Não via motivo para ter seu carro invadido e nem sair dele.
No entrevero que se seguiu, desafiado em sua autoridade, o policial chamou outras unidades, a arrancou do carro e transformou o episódio banal num imbroglio que acabou em tragédia. Três dias depois, ela se suicidou na cela.
Sua história, que virou série da HBO, objeto de estudos e protestos, foi outra das tantas que se destacaram das estatísticas de abordagem desastrada de policiais a sobretudo suspeitos negros. E revelou a que ponto uma política de estado paranóica pode produzir vitimas e acentuar preconceitos.
Nas mãos dos grande Malcolm Gladwell, ex-repórter da prestigiada The New Yorker e minha mais convicta influência depois dos 50 anos, é muito mais do que isso. É um grande ponto de partida para se estudar o perigo das interpretações apressadas na comunicação humana, a partir de falsos sinais do outro que tomamos como verdadeiros.
Como está no seu último e não menos excepcional Falando com Estranhos, de 2019, é outra grande abordagem sobre dissimulação e dos limites da interpretação, raiz de todos os seus livros, ja resenhados com paixão aqui no site.
Como sempre, ele lança mão de pesquisas, estudos clínicos e sua sofisticada capacidade de inferência, para iluminar grandes eventos da humanidade ou pequenas idiossincrasias humanas, em busca de verdades universais.
— No fim, os dois lados se anulam mutuamente. Policiais continuam matando pessoas, mas essas mortes já não dominam o noticiário. Talvez você nem se lembre mais de Sandra Bland. Nós esquecemos essas controvérsias após um intervalo razoável e partimos para outras coisas. Eu não quero partir para outras coisas.
Quer acreditar
Voltemos com ele por exemplo a Adolf Hitler, Amanda Knox e Bernard Madoff, que usa como exemplos de personagens que externavam em gestos e palavras o contrário do que eram. E provocaram, a partir dos sinais de sua comunicação incoerente, erros patéticos oriundos dos sinais que emitiam.
- Hitler ludibriou o primeiro ministro inglês, Neville Chamberlain, no que ficou famoso como o maior vexame diplomático da história. Era 1938 e o ditador e começava a invadir países vizinhos no início da escalada que pegou Checoslováquia e Holanda, antes de se expandir para o que todo mundo sabe.
Chamberlain saiu de dois encontros com ele impressionado com sua afabilidade, sua honestidade e sua disposição de restringir seu avanço a esses países que, no seu conceito de reparação da Primeira Guerra, pertenceriam por direito à Alemanha. Voltou para a Inglaterra com uma carta de compromisso assinada pelo ditador que acenou glorioso para os repórteres. - Amanda Knox era uma jovem estudante de Seattle em intercâmbio na Itália, em 2007, quando encontrou a amiga estraçalhada no apartamento e acabou, junto com o namorado italiano, condenada a prisão perpétua, da qual saiu após quatro anos por decisão da Suprema Corte italiana, oito anos depois do crime.
Não havia nenhum indício físico e objetivo contra ela, como se provou quando o verdadeiro assassino apareceu. Todo o carnaval da investigação construído em torno dela, por detetives vaidosos e imprensa leniente, que gerou uma série de estudos sobre um dos mais escandalosos erros judiciários do mundo, se baseou nas reações de adolescente mimada, que pareceu exageradamente fria nos primeiros interrogatórios. - Bernard Madoff era um operador respeitado do mercado de capitais americano que torrou cerca de 50 bilhões de dólares de seus investidores num sistema de pirâmide, o mais grosseiro dos golpes de investimento, que remunera os investidores antigos com a entrada dos novos.
Quando foi preso em 2009, descobriu-se que operava há mais de 20 anos sem despertar suspeitas nas autoridades do órgão de controle de capitais (SEC). Enganou o mais aparelhado e arredio sistema de capitais do mundo, apesar de várias denúncias que remontavam a pelo menos dez anos e nenhum indício confiável de investimento em ativos reais.
O que os três têm em comum é que se encaixavam em estereótipos construídos pelos seus interlocutores, numa tendência humana de acreditar no que quer ver e, em nome disso, levar em alta conta as aparências.
- Neville Chamberlain foi a Berlim querendo acreditar em Hitler e só viu seus gestos cordiais.
- Os investigadores levaram vantagem em provar que a adolescente sem noção era a culpada e enfatizaram seu comportamento evasivo.
- Os poucos investigadores que confrontaram Madoff, durante anos, preferiram acreditar nas suas madeixas brancas de velho senhor confiável de mais de 40 anos no mercado.
É o que Gladwell chama de pressuposto da verdade e da transparência, a partir da teoria de um maiores estudiosos da dissimulação, o psicólogo Tim Levine: Truth-Default Theory (TDT).
Seus estudos comprovaram, em linhas gerais, que somos bons para detectar quando uma pessoa está sendo honesta, mas um fracasso para perceber quem está mentindo.
Falsos pressupostos
Pressuposto da verdade está em que tendemos à boa vontade de acreditar que as pessoas com quem estamos lidando são honestas, até que haja dúvidas suficientes a respeito para deixar de acreditar.
— Saímos do modo pressuposto da verdade somente quando a contestação de nossa premissa inicial torna-se categórica. Começamos acreditando. E paramos de acreditar somente quando nossos receios e dúvidas chegam ao ponto em que não podemos mais dissipá-los.
E o da transparência está relacionado à nossa tendência de julgar a honestidade na maneira que as pessoas se expressam.
— Pessoas que falam bem, que demonstram confiança, que têm um aperto de mão firme e são amigáveis e interessantes são vistas como confiáveis. Pessoas nervosas, evasivas, gaguejantes, que se mostram pouco à vontade e dão explicações confusas e enroladas não são.
Ele faz uma comparação saborosa com o icônico seriado Friends, em que as expressões dos atores são tão reveladoras que se poderia assistir ao programa sem som, sem prejuízo de entender o enredo.
Mas não foi o que provou uma pesquisa de sinais corporais relacionados à trapaça, que envolveu milhares de pessoas em 58 países.
Nada menos 63% dos entrevistados, por exemplo, disseram que o sinal mais usado para identificar um mentiroso era a “aversão ao contato visual”. Mas essa é uma comprovada mentira, “para falar o mínimo”, como diz Maxwell. É coisa de Friends achar que “os mentirosos sinalizam seus sentimentos internos com olhos inquietos e esquivos”.
O que quer dizer que, a partir desses pressupostos, as pessoas não são coerentes e não têm a obrigação de sê-lo e não somos preparados para interpretá-las com exatidão.
— As pessoas que todos avaliam corretamente são aquelas coerentes, cujo nível de sinceridade por acaso é compatível com o que aparentam por fora.
O que explica Hitler, Amanda Knox e Madoff é que eram incoerentes.
Não tinham uma transparência lógica com nossos preconceitos. Como todos os vários casos que ele cita de espiões, estupradores e assassinos que enganaram por anos seus interrogadores, porque se fiaram no pressuposto da verdade e da transparência.
- Tem o caso da agente da CIA conhecida como Rainha de Cuba, a mais nociva traidora dos Estados Unidos, que enganou por mais de década os investigadores mais sofisticados serviços de contra-inteligência americanos.
- Do segundo homem da hierarquia de Osama Bin Laden, Khalid Sheikh Mohammed, que levou cinco anos enganando os mais capacitados interrogadores do Pentágono e de quem se duvidou da lista de atentados revelada.
- E o do pedófilo Jerry Sandusky, que levou outros 10 sem ser percebido pela cadeia de comando da Universidade Estadual da Pennsylvania, que acabou pagando mais de 100 milhões de dólares de indenizações por 45 casos de abusos descobertos.
Tratavam-se todos de pessoas que sinalizavam o contrário do que pareciam entre pessoas traídas por anos pela imagem que tinham delas ou pela falta de dúvidas suficientes ou pela disposição de acreditar nelas, mesmo diante de indícios.
Para provar sua tese, ele viaja como sempre de forma magistral de grandes eventos da humanidade a banalidades do cotidiano que vai espremendo, com base em dados e pesquisas, para tirar uma seiva arrebatadora.
Reações convencionadas de dissimulação
Como a principal delas, conduzida por Levine. Por anos, ele submeteu pessoas a um teste de conhecimento geral, em companhia de um parceiro que elas nunca viram, funcionário de seu laboratório. A dupla era deixada sozinha numa sala, diante de uma mesa onde a secretária deixava um envelope que continha as respostas.
A questão era avaliar em entrevistas gravadas em seguida se as reações convencionadas de dissimulação — desviar o olhar, cruzar as pernas, se coçar, etc — conferiam com a ação de terem ou não trapaceado e aberto o envelope.
Numa das séries, o psicólogo submeteu a outros especialistas 22 entrevistas de trapaceiros e igual número de honestos. O número de acertos passou de pouco mais da metade: 56%. Equivocaram sobre pessoas nervosas e inseguras que tinham sido honestas e de outras, seguras e convincentes, que haviam trapaceado.
Outra pesquisa excelente é a que dirigiu um grupo de cientistas da Universidade de Chicago. Eles queriam medir o quão justo era o julgamento dos juízes de custódia, que fixam fiança para soltar presos em tese inofensivos com base em seus prontuários mas também no pressuposto da transparência.
Eles criaram um programa de inteligência artificial que analisou as fichas de 554.689 réus levados a custódia, entre 2008 e 2013, dos quais 4o0 mil foram soltos.
O programa, alimentado com os dados fornecidos pelos investigadores e promotores, deveria elaborar a sua própria lista de 400 mil levando em conta quantos, com base nos dados objetivos oferecidos, voltariam a cometer crimes enquanto aguardavam julgamento.
Na comparação homem versus máquina, o computador indicou 25% menos pessoas que deveriam ser soltas. E numa lista de 1 mil presos de alta periculosidade, que jamais deveriam ser soltas, os juiz soltaram quase a metade, 48%. Significa que julgaram inofensivos como perigosos e vice-versa.
É sabido que os juízes levam em conta, além do prontuário e da aparência física, as reações do acusado com base em sua experiência de avaliar o que seriam indícios de dissimulação: desviar o olhar, gaguejar, contradizer. Mas a pesquisa com esses 550 mil casos veio comprovar que os juízes acertam tanto quanto qualquer ser humano.
O que isso quer dizer?
Julgar pela aparência
Que o ser humano, mesmo nas mais graduadas especimens experientes em anos de interrogatório de espiões, assassinos e estupradores, são falhos para avaliar o caráter com base em aparências, sobretudo quando dissimulam, e que, em vista disso, não deveriam fazê-lo.
— Quando um mentiroso age como uma pessoa honesta, ou quando uma pessoa honesta age como um mentiroso, nós ficamos desconcertados. Em outras palavras, seres humanos são péssimos detectores de mentiras.
O efeito colateral pode ser irrelevante no dia a dia das relações pessoais, mas desastroso em políticas de governo que redundou no tipo de policial que estava em Praire View naquele julho de 2015.
É onde se chega ao caso de Amanda Bland. Ela foi resultado de um clima de desconfiança a nível de gestapo (expressão minha) do aparelho policial em todos os Estados Unidos, depois de uma experiência bem sucedida de redução da criminalidade no Kansas, no final dos anos 70.
Os Estados Unidos viveu uma epidemia de criminalidade em todos os grandes centros, entre os anos 70 e início dos 90, e outra de experiências para combatê-la. A mais promissora, que reduziu radicalmente os índices de violência no Kansas e inspirou as polícias de todo o país, partiu da constatação de que determinadas áreas exclusivas são responsáveis pela maioria dos crimes.
(A partir dela, Gladwell envereda pela teoria do acoplamento, em que pessoas fazem o que fazem pelo ambiente em que estão e deixam de fazê-lo em outro. A seu jeito sempre original, parte do suicídio da poeta Sylvia Plath e do problema do aquecimento a gás em Londres, para provar que suicídios, como tragédias e crimes, podem ser evitados por mudanças do ambiente.)
A experiência do Kansas acabou por concluir como modelo mais eficiente de combate a abordagem indiscriminada de motoristas para caçar suspeitos por outros crimes que não os relacionados ao ato de dirigir.
O policial passou a atuar pesado contra pequenas falhas — faróis queimados, placa amassada, carteira vencida — como desculpa para se debruçar sobre a janela do motorista e buscar indícios de outros crimes e de dissimulação: restos de comida, bebida, remédios…
O que levou a uma paranoia nacional e ao patrulheiro Encinia e Amanda, que levou até o limite a desconfiança de uma inocente, com medo das reações dela e das suas mesmo. E, numa deturpação do modelo do Kansas, no lugar errado com a pessoa errada. O entorno da universidade não era uma área da pesada.
No longo interrogatório que Gladwell reproduz, está um homem também amedrontado, diante de uma moça inofensiva, por obra e arte de um sistema que se tornou opressivo e paranóicos seus agentes. Que comete erros em cadeia por interpretar em excesso.
Como diz o autor a respeito do escândalo Amanda Knox, que cabe perfeitamente em Amanda Bland:
— Vou dar a mais simples e curta de todas as teorias possíveis sobre Amanda Knox. O caso dela é sobre transparência. Se você acredita que a forma como um estranho se expressa e o jeito como age são uma pista confiável sobre o que ele sente — se você aceita a falácia de Friends —, então você vai cometer erros.
Transpondo para a nossa realidade, especulo sobre o clima que acabamos criando no nosso debate político, com o advento da polarização política e das redes sociais. Qual seja, a de que estamos julgando rápido demais, com base num pressuposto da verdade ao contrário: a de que todo mundo é bandido.
E também é muito verdade que escolhemos acreditar no que queremos ouvir, independente de que todos os sinais em contrário desaconselhem.
O resultado das últimas eleições e a defesa cega de grande parte da sociedade de seus messias, apesar de todas as evidências em contrário, é grande exemplo de que nada aprendemos na arte de enxergar nossos estranhos.
Outros livros de Gladwell:
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