O discurso da vitória de Bolsonaro, é uma profissão de fé num Estado que quer ser mínimo para oferecer as condições em que todos possam produzir, competir, reunir, transitar e opinar num clima de liberdade e respeito às leis.
— Podem ter certeza de que nós trabalharemos dia e noite para isso. Liberdade é um princípio fundamental: liberdade de ir e vir, de andar nas ruas, em todos os lugares deste país, liberdade de empreender, liberdade política e religiosa, liberdade de informar e ter opinião. Liberdade de fazer escolhas e ser respeitado por elas.
Defende o que as nações mais avançadas fizeram, de tirar o Estado da vida do cidadão e “do cangote do setor produtivo”, na expressão usada em campanha que ganha aqui uma versão mais refinada:
— Isso significa que o governo federal dará um passo atrás, reduzindo a sua estrutura e a burocracia; cortando desperdícios e privilégios, para que as pessoas possam dar muitos passos à frente. Nosso governo vai quebrar paradigmas: vamos confiar nas pessoas. Vamos desburocratizar, simplificar e permitir que o cidadão, o empreendedor, tenha mais liberdade para criar e construir e seu futuro.
Na melhor expressão do discurso, em que promete fortalecer a federação e mandar o que puder de recursos para estados e municípios, onde de fato vive o cidadão, pregou:
— Vamos “desamarrar” o Brasil. Mais Brasil e menos Brasília.
Como estamos no Brasil de hoje, fala o óbvio sobre ser também decente, respeitar a propriedade privada, ser menos ideológico nas relações bilaterais (mais objetivo “com países que possam agregar valor econômico e tecnológico aos produtos brasileiros”) e governar para as próximas gerações, “não para a próxima eleição”.
— Uma Nação livre, democrática e próspera – resumiu.
Discursos nos jornais
Os principais editoriais de hoje dos três jornais mais influentes — O Estado de São Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo — o elogiaram com reservas, na dúvida razoável de que não há como lê-lo sem considerar os sinais de intransigência emitidos pelo candidato em sua longa carreira parlamentar.
Cristalino e enxuto para os padrões do gênero, talvez escrito por Paulo Guedes, o discurso do Jair Bolsonaro eleito é, porém, seu atestado em cartório para clarear o que não disse durante a campanha. Ao mesmo tempo, responder às tremendas dúvidas sobre sua capacidade de ceder, converter e demonstrar que tem algo mais a oferecer que suas frases de efeito.
Revela uma enorme flexibilidade de adaptação de que nunca duvidei, como escrevi neste artigo. Com sete mandatos na Câmara dos Deputados, depois de vereador, Jair Bolsonaro é dos animais políticos que sabe ouvir, conceder e fazer alianças.
Seu radicalismo é peça de campanha. Assim como nunca acreditei no esquerdismo propalado do coronel esclarecido Ciro Gomes, nunca duvidei de que Bolsonaro fosse capaz de dar saltos triplos carpados para rever suas posições. Com a inteligência animal de não parecer contraditório e manter íntegro o cavalo de batalha que lhe trouxe até aqui: combate ao PT e à insegurança.
Foi assim em toda a campanha eleitoral, que começou logo depois da vitória de Dilma Rousseff em 2014. As bravatas sobre o pior que já se ouviu por um candidato em tempos democráticos, ilustradas por gestos que simulam revólveres e metralhadoras, foram sendo diluídas à medida que foram se revelando problema.
Suas propostas radicais na economia e enxugamento da máquina do Estado, a começar por redução do número de ministérios, foram se desidratando no choque com a realidade e a necessidade de compor um governo de pacificação.
Foi sinal de conversão mais eloquente, no ápice da curva de crescimento, o discurso perigoso que emitiu na transmissão ao vivo para a militância reunida em multidão na avenida Paulista, no domingo anterior à eleição. Que, por azar, coincidiu com a divulgação do vídeo em que seu filho pontificava sobre a facilidade de fechar o STF com um cabo e um jipe.
O ditador que pregou ali a aniquilação total do adversário, entre frases muito bem calculadas para esquentar a militância sedenta de vingança, foi o mesmo democrata que amanheceu na segunda-feira empenhado com humildade em afastar fantasmas junto à opinião pública e os poderes da República.
Discurso no palanque
Foi o maior estrago de sua campanha. Contribuiu para reduzir sua dianteira folgada nas pesquisas na reta final, jogar intelectuais relevantes em dúvida para o colo do adversário, que aproveitava sua ausência dos debates para ocupar espaços importantes nos meios tradicionais de comunicação.
Rápido no gatilho, entretanto, empenhou-se semana adentro em estancar a hemorragia, emitindo o que fosse possível de sinais que dissessem o contrário ao que estava sendo considerado: encontros, gravações e entrevistas, ao lado de negros, índios, deficientes, padres, lideranças empresariais e políticas. E família, sobretudo.
Era o animal político reagindo de forma calculada e revelando seu DNA de adaptação. Até confluir para o discurso da vitória, de sua profissão de fé na democracia e na liberdade.
Pode-se objetar que essa casca pode não sobreviver às intempéries de um governo que espera combate acirrado da oposição que saiu das urnas com 45% dos votos. Que o animal irracional que sub-habita o político possa emergir em algum momento para chutar a porta.
Mas até onde sei sobre essa raça, ela tem enorme capacidade de adaptação quando está em jogo sua sobrevivência. Que é sim capaz de aprender rápido com a adversidade, incorporar novos hábitos e transmutar quando lhe interessa.
Veja o caso de Fernando Haddad. Esse animalzinho político de pouca estrada também tem valores arraigados difíceis de mudar, como, para ficar no exemplo que o difere de Bolsonaro, sua crença inamovível no controle do Estado sobre tudo. Quem diria que fosse dar um cavalo de pau tão radical, pelo menos aparentemente, em seu discurso, suas crenças e suas cores? E mudar paradigmas importantes no jeito igualmente radical de seu partido de fazer política?
É a campanha eleitoral, estúpido. E sua força para mudar o ambiente e sua fauna. Talvez superficialmente no início, mas mais a fundo à medida que novas eleições vão ocorrendo.
Discurso do adversário
Fernando Haddad teve cuidado de não fazer um discurso de revanche por um terceiro turno, nem de resistência e nem de questionamento da vitória do adversário. Mas também não amaciou para cumprimentar, reconhecer a derrota e prometer colaborar.
Num progresso em relação ao histórico de seu partido, evitou falar só para a militância e se mostrou responsável por representar bem e de forma mais abrangente a pluralidade dos 45 milhões de votos que ultrapassa em muito o embornal de votos do PT.
Sinalizou que, em nome deles, fará uma oposição firme, seja lá o que isso signifique:
— Em nome da democracia, temos de defender o pensamento e a liberdade dos 45 milhões que nos acompanharam. Temos a responsabilidade de fazer oposição e de colocar o povo brasileiro acima de tudo.
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