Bolsonaro corre atrás de voto dos mais pobres para compensar o tempo perdido com a pauta ideológica que é ruim para Lula, mas não é prioritária na hora do voto
Tanto o noticiário da velha grande imprensa e das redes sociais que ela alimenta estava coalhado na última semana de questões de gênero e direito da mulher ao próprio corpo, ao cabo dos três casos rumorosos de estupro e assédio sexual:
1 – O da menina de 10 anos em Santa Catarina engravidada, como veio a se saber, por um amiguinho de 13.
2 – O da baixaria de dois colunistas de fofoca contra a atriz Klara Castanho, por ter doado o filho produto de um estupro.
3 – O das denúncias de assédio moral e sexual contra o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães.
Como sempre em polêmicas de prato cheio para os afazeres de articulistas, influencers e propagadores de fofocas rudimentares, repetiam o mesmo ritual de crise que dura 24 horas e parece, enquanto sobrevive na espuma do noticiário, questão fundamental de vida ou morte para o país.
Também como sempre, arrasta nelas os candidatos a presidente, por ação, omissão e instinto natural de vingança de suas tribos. Lula e Bolsonaro acabam tendo que se envolver ou se explicar porque têm posições conhecidas e antagônicas a respeito dos direitos da mulher.
Bolsonaro mais do que Lula, porque também provoca, navegando no que entende como o calcanhar de Aquiles do seu adversário: a defesa do aborto, ainda que com reservas. Sabendo do perigo do tema, como Dilma Rousseff em 2010, o petista já fez questão de dizer que, pessoalmente, é contra.
Bolsonaro também apanha mais, porque não tem pudor de colocar a cara a tapa para defender posições sensíveis ao grosso da sociedade, em linguagem dura. Aborto seria um assassinato defendido pela esquerda identitária afinada com Lula.
E também porque é o avesso do avesso do avesso do que pensa a grande mídia liberal e progressista, com o perdão da redundância, feita por homens e mulheres envolvidos na luta das mulheres, em defesa dos valores universais da liberdade individual e dos direitos humanos.
É curioso, contraditório e estimulante intelectualmente. Como que essa massa crítica e influente que se julga porta voz da sociedade pensa diferente dela e combata o candidato que, no caso do aborto sobretudo, a representa?
Há pesquisas recentes que dão mais de 80% da população contra. Em pelo menos uma fresquinha da plataforma de pesquisas Pulso, de O Globo, divulgada ontem, são 73% contrários. Só 16% são a favor da legalização, um índice que se mantém desde 2018.
Acontece a mesma coisa na questão delicada e urgente da segurança, da educação e da liberação das drogas, em que Bolsonaro defende os mesmos valores da maioria que a massa liberal progressista nas redações condena.
Para 70%, é preciso reduzir a maioridade penal para prender adolescentes infratores. Outros 59% concordam que “bandido bom é bandido morto” e metade dos homens (49%) a pena de morte. São 67% a favor da militarização das escolas e 84% que elas devem ensinar a criança a rezar e acreditar em Deus. São 67% contra a legalização das drogas.
Outros de seus valores já não emplacam e estão mais ou menos equivocados. A maioria já não concorda mais com ele sobre armas, casamento gay e adoção de crianças por casais do mesmo sexo.
Gira em torno da metade ou mais um pouco os favoráveis à união de homossexuais (49%) e suas adoções (56%), mas em crescimento desde 2018. São 59% que discordam de que armar a população reduz a criminalidade.
Mas ainda assim, sendo ou não sincero e que suas práticas possam ser contrárias ao que prega, ele está mais afinado que Lula com essa sociedade majoritariamente conservadora. Os que admitem ser de direita são o dobro dos que se acham de esquerda, no mesmo conjunto de pesquisas.
Não à toa que, sempre que pode, ele tenta puxar a campanha para esse lado. E não menos verdade que o grande mito das esquerdas corre como o diabo da cruz para o outro, longe desses temas. E não só porque perdeu o bonde das redes sociais onde essa banda toca.
Com o faro de sempre, percebeu desde a primeira hora da campanha que a luta pela renda é um terreno mais confortável, menos disperso e arriscado. Não só porque se sente mais seguro no terreno econômico que pisou como presidente, mas porque sabe dos perigos dessa pauta.
Entretanto, como refém dessa militância que pensa e prega o contrário da maioria, advertiu, também lá no início, que “não podemos cair em provocação”. Disse a seus fiéis fanáticos, com perdão da redundância, que a luta por essas causas são relevantes, mas não agora.
É contraditório e frustrante para essa esquerda alocada nos movimentos LGBTQIA+, na universidade e no sindicalismo, com boa simpatia na grande imprensa, ter que ficar calada numa eleição que aguardava como quem espera o carnaval para pôr o seu bloco na rua com todo tipo de discurso contra opressão sexual, de gênero ou de raça.
Essa militância, mundial e influente como seus amigos das redações, já foi criticada por estar mais atenta às sensações/pulsões sexuais que à premência de encher a barriga. Com o desprestígio de Marx e da luta de classes, correu atrás de minorias e acabou defendendo feudos e castas com interesses/desejos mais sensoriais que concretos.
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Do faro para o instinto, Lula enquadrou todo mundo, a começar da velha guarda que influiu na elaboração de seu programa de governo. Ela começou cedendo às alas mais jovens do identitarismo e acabou pisando no terreno conhecido, como disse o velho Rui Falcão:
— Nosso foco é defender a melhoria das condições de vida do povo, geração de empregos e renda, aumento do salário mínimo, combate à inflação, mais recursos para saúde, educação, cultura e redução das desigualdades.
Toda a panfletagem identitária acabou reduzida a um correto “combate a todo tipo de preconceito, de raça, gênero, de orientação sexual”, na linha clássica da velha luta pelos direitos civis que sobrepunha interesses gerais aos específicos e de grupos.
Neste caso, Lula tem a mais a cara da sociedade que vota, que é diferente da que gasta energia com aborto, casamento gay e assédio sexual nos jornais e nas redes sociais.
As pesquisas vieram a mostrar que essa sociedade é conservadora em algumas coisas e vai ficando liberal em outras, mas que, no conjunto e como sempre, vota pela barriga. Indicam o quanto Bolsonaro perde entre as pessoas de até dois salários (56% a 22%, no Datafolha) e no nordeste (58% a 19%).
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Como também sinalizam o quanto perdeu tempo com a pauta ideológica e descuidou do que se descobriu que derruba governos desde que inventaram as pesquisas eleitorais, a economia. A PEC kamikaze para reparar o estrago com as classes mais pobres, às vésperas de eleição, é a derradeira prova disso e de seu desespero.
Acordou enfim para a obviedade de que a maioria da sociedade é contra aborto, legalização das drogas, proteção de jovens infratores, mais ou menos casamento e gay e adoções homoafetivas, mas que o ronco da barriga é infinitamente mais determinante na hora do voto.
Nessa linha, também pode não ser determinante sua alta rejeição entre as mulheres, não pelos motivos que lhe atribuem. As eleitoras, na verdade, são as que cuidam da economia da casa e, historicamente, também votam em quem põe mais comida dentro dela.
Lula também era mal visto pelas mulheres, antes de ser presidente e sinalizar uma agressividade incômoda, anterior à barba bem aparada e aos ternos bem cortados. Mas a senhora que trabalha aqui em casa, que já esteve nesse grupo e viveu os melhores anos de sua vida no seu governo, já quis lhe levar um bolo na cadeia.
Ela fala em nome de todas as que tem mais o que fazer na vida do que ficar proselitando nas mídias, grandes ou pequenas, também um tanto quanto perdidas.
> Publicado no Estado de Minas, em 5/7/2022
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