O Brasil conheceu em 2008 uma Dilma Vana Rousseff magra, óculos de intelectual e uma contundência dos tempos da militância, quando nocauteou o senador Agripino Maia numa audiência do Senado.
Já poderosa chefe da Casa Civil, tinha ido fazer fumaça em torno das denúncias de mau uso dos cartões corporativos, e ele teve a má hora de acusá-la de ter mentido quando presa na ditadura.
Ela devolveu o petardo que faria história:
— Eu era uma menina, senador. Orgulho muito de ter mentido. Qualquer pessoa que ousa dizer a verdade para interrogador compromete a vida de seus iguais. Na tortura, quem tem coragem e dignidade fala mentira.
Ficou-se sabendo então que havia sido uma técnica brilhante que encantara o presidente Lula na primeira vez em que se reuniram, quando lhe abriu um laptop cheio de planilhas coloridas sobre o setor energético.
Seis anos depois, a nocauteada era ela.
O país a reencontrou matrona, alguns quilos a mais e uma abulia profunda de quem queria sair logo da cerimônia de entrega da taça aos alemães pela vitória na Copa do Mundo. Um tanto catatônica debaixo da vaia colossal temperada de palavrões que explodia a cada vez que seu nome era citado.
Era um fiapo daquela mulher vigorosa.
Experimentava a primeira punição pública séria por ter queimado em menos de quatro anos de mandato presidencial todas as reservas de prestígio que adquirira desde que se apresentara como a gerentona capaz de uma faxina ética nos costumes do mundo masculino da política.
O confronto das duas imagens me deu o primeiro grande insight, quase uma epifania, da devastação provocada pelo poder numa pessoa despreparada para suportá-lo. Ou que, tendo tentado aprender as patranhas necessárias a seu exercício com o padrinho encantador de serpentes que a fez presidente, acabou perdendo sua identidade e vestindo um figurino que não lhe cabia.
Suas trombadas mal explicadas num português claudicante sinalizaram a partir daí a aprendiz de feiticeiro que tentou simular sem sucesso o mestre que não alcançava: comunicar como ele, articular como ele, tirar e colocar cartas na manga como ele.
Era perfeita quando o obedecia na Casa Civil e na presidência do Conselho de Administração da Petrobras, com seus relatórios, seus dossiês, seus despachos bem combinados. Mas débil quando teve que passar para a linha de frente e simulá-lo.
Estratégias de comunicação
O produto dessas reflexões está num dos artigos de que mais gosto — Dilma do Macaranã é uma sombra da Dilma de 2008 — e é recorrente como pano de fundo ou fio condutor da coletânea de 169 artigos que acabo de publicar em ebook, na Amazon. Veja aqui >>>
Vão do que pode ser considerado o marco inicial de sua desfiguração, os protestos do Movimento Passe Livre, em junho de 2013. Dali, até a quitação da fatura de seus erros com o destino, no impeachment, três anos e dois meses depois, foi uma cadeia de tropeços em direção ao tombo da que seus fãs chamavam “guerreira de coração valente”.
Foram publicados aqui no site e no www.uai.com.br à média de dois a três por semana, no calor de cada um dos movimentos tectônicos do grande terremoto nacional que levou o país à mais grave de suas crises e na tentativa de compreensão de seus efeitos sobre a opinião pública.
Vão em ordem cronológica para facilitar a compreensão da cadeia de solavancos em direção à queda, que pode ser encapsulada em cinco eixos:
- A derrocada econômica, mais explícita a partir do Movimento Passe Livre, até a sensação de colapso do país, no final de 2015.
- O clima de guerra suja das eleições de 2014 e a frustração nacional que sobreveio à constatação de suas contradições.
- O enfrentamento com Eduardo Cunha, a fritura de Michel Temer como articulador e a explosão das pontes com o Congresso que deram no impeachment.
- Os atropelos de comunicação para lidar com o agravamento de cada crise, produzida pela economia, pela luta política ou pelas ações da Lava Jato.
- O enfrentamento da sociedade e a opção pelo barulho da minoria na reta final do impeachment.
Alguns foram premonitórios:
- Amigos farão mais estragos que oposição ao governo de Dilma
- Defenestração de Dilma já está precificada pelo mundo político
- Fatiamento das ações vai espalhar outras Lava Jato pelo país
- Se foi como o domingo de Collor, Dilma tem 43 dias de governo
- Tiro alto de Janot une políticos e pode ter efeito contrário
Como se tratam de inferências de comunicação e marketing político a partir do impacto do noticiário de cada um dos degraus que conduziram ao tombo, considerei a princípio organizá-los por temas.
Dividiria pelas categorias do meu site que dão sentido à minha experiência de jornalista e comunicador interessado em Mídia, Marketing e suas relações de Poder. Comunicação & Poder, comunicação é poder.
Há textos bem específicos e elucidativos sobre os impasses da mídia tradicional neste período em que o avanço das redes sociais avariou o poder dos grandes conglomerados de comunicação. Destaco, entre meus preferidos:
- Por que, como diz Lula, a imprensa não gosta do PT?
- O caso Xico Sá e a imparcialidade em tempos de guerra
- Site contra jornalistas mostra amadorismo de Lula com imprensa
- Mensalão ou “Mensalão”? Aspas também podem ser ideológicas
- Militância e mais quatro razões do sucesso de O Antagonista
Outros sobre Comunicação e Marketing Político, no rastro das grandes lições deixadas pela mais suja de nossas campanhas eleitorais:
- Da arte da perfumaria nas ações de comunicação do governo
- Quem escreveu o quê no discurso de Dilma que levou panelaço
- O problema da jornada do herói no discurso de Lula
- O discurso de Lula contra a imprensa e a arte de eleger inimigos
- Vídeo dá pista de como Dilma queimou rápido sua credibilidade
Um capítulo inteiro poderia ser dedicado aos perfis das personagens determinantes período. Que minha alma de escritor, também interessado em Escrita Criativa, experimentou enorme prazer de escrever. Em especial:
- O que fez de Eduardo Cunha o Frank Underwood da política nacional
- Sérgio Moro saca o holofote e abate um líder e um sistema
- Janot, Zavascki e como calibrar o peso da ingratidão aos padrinhos
- Janaína Paschoal seria uma boa petista, se estivesse do outro lado
- Dilma, Temer e por que, na política ou no esporte, vence o mais adaptado
Lula, nosso segundo maior líder de massas, está implícita e ou explicitamente na maioria deles.
Entre os que os mais gosto, mais curtido e menos compreendido em minha rede social, está o que tocava na delicada hipótese de sua morte real quando se descobriu com um câncer na garganta. Um especulação sobre como passar à história e eleger gerações em cima de sua tragédia, à semelhança de outros que morreram no topo do prestígio, Getúlio Vargas e Tancredo Neves:
- A morte lenta de Lula e o risco de peronismo no país
Um outro capítulo poderia ser dedicado aos que tentaram traduzir o espírito da época, para além do calor do noticiário:
- Clima de descrença e vale tudo é pior do que a da novela
- Três razões por que manifestos de artistas não fazem mais sucesso
- O palavreado de Lula e como o grampo tira a casaca dos políticos
- A Rainha, a princesa, Dilma, Lula e o PT
- Era nacionalista de Dilma tem mais afinidade com era Geisel
Jogo político
A opção enfim pela linha do tempo tem um tanto de alma de historiador interessado em contribuir para a historiografia do período, quanto de traçar o perfil da 36ª presidente que vai frequentar nossos livros de história. Ao mesmo tempo, ampliar a compreensão da atividade política num momento em que ela deu tantas mostras de seu fracasso e de suas potencialidades.
Nas mãos de qualquer político talhado no jogo político, muitas das crises teriam sido desidratadas.
Atribuir-lhe todas as desgraças de seu infortúnio, considerando o que herdou e a súcia que a circundava, chega ser injusto.
Sim, o PMDB lhe tomou o governo quando viu que dava. Inviabilizou-o para dizer depois que ela não tinha competência para tocá-lo. É cruel que tenha começado a cair exatamente quando começou a dar sinais de boa vontade para consertar suas contas.
Mas, é preciso colocar na conta sua colossal parcela de contribuição, sem ter grandeza para entender as razões do adversário ou humildade para julgar que ele, por pior que fosse, não traduzia um sentimento isolado.
E tomar a parte como referência do todo.
Seu inimigo maior, o presidente da Câmara Eduardo Cunha, principal culpado de sua desgraça, conseguiu o que quis porque já não falava só por ele.
As derrotas acachapantes nos plenários da Câmara e do Senado eram a prova de que ele transpirava mais do que uma vingança pessoal e que já não havia mais ninguém relevante do outro lado da trincheira disposto a ajudá-la.
O mundo político tem a boa explicação de que faltou à técnica de algum brilho experiência eleitoral para treinar troca e articulação, para aprender que política não é uma ciência exata.
É a chamada arte do possível que tenta consensos provisórios entre pessoas não necessariamente as melhores em busca de leis e soluções quase sempre insatisfatórias.
Mas é do barro de que somos feitos, à espera de mãos hábeis como as do seu padrinho para manipulá-lo.
Que ela nunca teve.
Seu fracasso é também o triunfo da atividade política construída no que ela tem mais nobre, apesar de suas misérias: concessão, convencimento e humildade.
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