Confronto interno em debate é melhor prova de que direita tal qual pregou Olavo de Carvalho cresceu, consolida militância e disputa com esquerda hegemonia cultural.

O analista político da CNN, Caio Copolla, e o deputado e líder do MBL, Kim Kataguiri, protagonizaram um debate raro e antes impensável entre dois representantes da fina flor da nova direita.
Não sem, antes e depois, mobilizarem legiões de fãs de cada lado, turbinando os seus e outros canais conservadores no Youtube, na demonstração mais acachapante de que, sim, a direita brasileira que deixou de ter vergonha de dizer seu nome tem, agora, até militância.
Como sempre nesses casos, não há consenso sobre quem venceu, a se fiar nas opiniões que sempre embutem preferências camufladas,
Publiquei um vídeo com o paradoxo de que Kataguiri venceu, mas prefiro Copolla, traindo minhas restrições ao discurso político do primeiro que, embora mais eficiente, tem menos compromisso com a verdade de longo prazo do que o analítico/científico do segundo. (Veja ao pé do artigo.)
Minha inspiração era menos o resultado do que a sugestão, de consolidação dessa militância, algo também impensável até há poucos anos, quando protestos de rua, guerrilha virtual e briga interna, sinal de crescimento, era inerente à esquerda.
Desde que o mundo existe, a direita é naturalmente quem está no poder e apanha de quem está na rua.
Enquanto a oposição, por natureza de esquerda, precisava ir para a briga, na tribuna dos parlamentos, nos sindicatos, na igreja, na universidade e na imprensa, a direita articulava nos bastidores, com cargos e dinheiro, sempre de melhores resultados.
A direita foi sempre sinônimo de opressão, do poder de cima para baixo. A esquerda, a resistência, de baixo para cima. Era natural dos humanos da rua, intelectuais e artistas à frente, o farol da humanidade, até certo romantismo de ser do contra.
Até o dia em que essa esquerda, que avocava e de certa forma manipulava o poder moral nos meios formação de opinião — imprensa, universidade e indústria cultural — tomou o poder político formalmente. E a direita teve que se reinventar.
Desde a posse de Lula na presidência e até o final do primeiro mandato de sua sucessora, Dilma Rousseff, a direita política contentou-se com o que sabia fazer de melhor, mancomunar com os governos.
Organizada em federações empresariais que só militavam em reuniões abertas ou de bastidores, expressava-se por meio dos partidos ultra conservadores, PSD, UDN, Arena, PDS, PFL e PMDB, por exemplo.
Quando foi de seu interesse, ajudou a patrocinar o PT por baixo e o PMDB por cima dos panos. Exemplos clássicos dela eram o PFL (depois DEM), para exercer o pouco que havia de oposição nos canais tradicionais, a tribuna do Legislativo e a imprensa.
O PSDB, que capitaneava a principal força contra o lulopetismo, foi a encarnação mais moderna, elitista e arrogante da velha direita de gabinetes, que nunca se misturou à gente do asfalto.
Os debates de seus candidatos nas quatro eleições que perderam para Lula eram o confronto de um tipo de defesa estrutural do sistema. O argumento de reforma das instituições como forma de organização da sociedade, enquanto o outro lado ia para as ruas falar de salário, moradia, arroz e feijão na mesa.
Foi o movimento Vem Pra Rua, de junho de 2013, que mudou tudo.
Monopólio ideológico
Foi a primeira vez que se tomou consciência de que os movimentos ditos populares tinham perdido as ruas, velho monopólio seu. O que havia começado como um simples protesto contra o preço das passagens de ônibus, o arroz com feijão dos jovens, se transformou num painel de todas as reivindicações, de todas as classes.
Catalisou todo tipo de angústia e abriu a porteira de todos os protestos em seguida, sem uma só bandeira vermelha.
A direita que deixou de ter vergonha de dizer seu nome engrossou os movimentos que dariam no impeachment de Dilma, três anos depois, e nos que impulsionariam a candidatura de Jair Bolsonaro.
Ele desmoralizou todos os seus competidores do mesmo espectro político, ao mostrar o quanto estavam anacrônicos para interpretar a angústia subjacente da sociedade. Majoritariamente conservadora, não se achava representada por uma elite política que nunca foi para as ruas.
Não confrontava, por medo de parecer reacionária, o discurso relativista da moral e dos costumes que priorizava pautas como direitos humanos, cotas raciais, igualdade de gêneros, direito a aborto e liberação de drogas, numa sociedade desde sempre desconfortável com esses temas. Tinha vergonha de dizer seu nome.
O desconforto era antigo e antecede o junho de 2013, da explosão de algo entalado na garganta. Olavo de Carvalho avoca, com razão, o mérito de estar falando dele há pelos menos 30 anos e de ter dado a base teórica que está na raiz do novo movimento no Brasil.
Ele tem um arsenal de provas, em dezenas de artigos, vídeos e entrevistas, de que há pelo menos 20 anos buzinava que ganharia as eleições no país o candidato que se apresentasse com uma pauta realmente de direita. Que fosse contrária a tudo que se vinha falando, para uma sociedade que ele nunca teve dúvida de ser majoritariamente conservadora.
De fato, pode-se localizar o marco inicial da reação conservadora no seu O Imbecil Coletivo, de 1995, uma coletânea de sátiras que reduziu a pó as imposturas intelectuais de jornalistas, cientistas sociais e artistas que pontificavam na vida cultural da última década do século, no país.
Demolia os disparates dos formadores de opinião do mainstream intelectual brasileiro, nas três principais tribunas de formação: a imprensa, a universidade e a indústria cultural.
A partir de certo burocratismo do pensamento, desde que a vida intelectual virara profissão universitária, que mal se percebia refém da ditadura de certas deturparações do conhecimento, como o politicamente correto.
Denunciava sua gênese na revolução silenciosa que começara nos anos 60 em reação à ditadura militar , tinha vencido a guerra cultural e implantando uma hegemonia cultural de imbecis retroalimentando suas imbecilidades, nas três instâncias — universidade, imprensa, indústria cultural.
Já antecipava quase tudo o que viria ser pauta quente mais de 20 anos depois e só então percebido no mal estar da eleição de Donald Trump e da ascensão de Bolsonaro: a praga do correição política imposta que estava na base de toda uma tentação autoritária disfarçada de progressismo.
Rasgo na hegemonia cultural
Seu primeiro rasgo na carcaça dessa hegemonia, dois anos antes de O Imbecil Coletivo, foi o envolvimento involuntário na polêmica em que desmoralizou a até então vetusta SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Um aluno de seu curso “Aristóteles e a Cultura” enviou uma de suas apostilas como proposta de publicação na revista da entidade, que mereceu uma resposta educada dos editores de que a publicação não se interessava por assuntos de “odontologia”.
(Talvez porque, especula Olavo, Aristóteles tinha dito numa nota de rodapé que as mulheres tinham mais dentes que o homem.)
Ele cobrou explicações, no argumento razoável de que não tinham lido o artigo, e recebeu um longo parecer que, conforme diz:
– Era uma imbecilidade da primeira à última linha, um disparate a cada três.
Sua contestação ironicamente demolidora, publicada como posfácio na mais recente reedição de Aristóteles em Nova Perspectiva, caiu numa página inteira do Jornal do Brasil e suscitou uma das maiores polêmicas da história da filosofia nacional, a partir de uma reação sofisticada do poeta Bruno Tolentino.
“Quem é a cavalgadura?”, era o título do artigo que ajudou a amplificar o nome de Olavo, que o O Imbecil Coletivo, logo em seguida, viria a expandir como polemista impiedoso, de formação intelectual intimidade a ponto do quase incontestável pela mediocridade em torno.
Nos dois livros que o antecedem e com que formam uma trilogia, A Nova Era e a Revolução Cultural e O Jardim das Aflições, ele localiza o atraso brasileiro no contexto do pensamento ocidental, visivelmente influenciado pela decadência da sociedade americana, para onde se mudaria no início deste século.
Percebia já a praga da burocratização da vida intelectual nas universidades, a tentação de controle do pensamento pela ditadura do politicamente correto e a relativização dos valores por um progressismo contrário aos interesses da maioria conservadora.
Grande marco/sinal de certo mal estar dessa civilização e de início da reação conservadora, identifico na fundação da Fox News, em 1996.
Engajamento na imprensa
O canal de notícias do milionário da mídia Rupert Murdoch, inspirado e tocado por Roger Ailes, um conservador de quatro costados que havia assessorado os principais presidentes republicanos, foi o primeiro engajado à direita como missão desavergonhada.
Seu crescimento vertiginoso em torno de uma pauta de valores conservadores e viés nacionalista, quase xenófobo na cobertura de eventos determinantes como o 11 de Setembro, atendia a uma demanda engasgada com o progressismo relativista dos até então líderes de audiência, CNN, ABC, CBS, NBC.
A partir de sua chácara na Virgínia, o jardim de suas aflições, Olavo de Carvalho manteve pé no Brasil em colaborações na imprensa e nos seus cursos de filosofia e na pregação, agora já online, com que foi formando uma legião de seguidores e multiplicadores quase fanáticos.
(Um levantamento criterioso do melhor dele na imprensa desde os 90 foi reunido com rigor por um deles, o jovem e brilhante Felipe Moura Brasil, na coletânea O Mínimo que Você Precisa para não Ser um Idiota, de 2013, que o exigente Reinaldo Azevedo saudou neste artigo na Veja com deslumbramento:
“Ninguém, no Brasil, escreve com a sua força e a sua clareza. Consegue, como nenhum outro autor no Brasil — goste-se ou não dele —, emprestar dignidade filosófica à vida cotidiana, sem jamais baratear o pensamento.”)
Como a Fox de Roger Ailes, Olavo de Carvalho era uma ideia em crescimento numa larga faixa da sociedade engasgada com o relativismo moral e a falsa prioridade de uma pauta que não interessava à maioria: direitos humanos, igualdade de gêneros, direito ao aborto, liberação de drogas, entre outras.
Se Roger Ailes desmoralizou a falsa prioridade dos líderes de audiência, Olavo começava a fazer um rombo considerável nessa concepção de mundo que havia se transformado num espírito do tempo, o zeitgeist tupiniquim, uma hegemonia cultural tão forte quanto mal percebida por seus fundadores.
Assim como a Fox chegou em Steve Bannon e na campanha de Donald Trump, que puxou a onda conservadora no mundo e elegeu candidatos de extrema direita em vários países, Olavo de Carvalho chegou nos filhos de Jair Bolsonaro e no próprio. Caso clássico de personagens à procura de um autor.
A campanha eleitoral de Bolsonaro em 2018 fez tudo o que mandava o receituário da campanha republicana nos Estados Unidos, técnica e intelectualmente. Do uso massacrante das plataformas de mídias sociais ao ideário de combate às minorias, como forma de desmontar as pautas identitárias e a ditadura das minorias.
Incorporava bem e emulava um mal estar da civilização que estava no ar desde os anos 90, à espera de um gênio para perceber. Houve alguns, como Ailes, Bannon e, por circunstância e talvez sorte do Brasil, Olavo.
Perceber, divulgar e criar militância, que ele fez com indiscutível sucesso. Um de seus mantras em grande parte do material que propaga era a necessidade urgente de que a direita tivesse uma militância, algo com que, já restou provado, ela nunca se preocupou.
A militância que deu em Trump nos Estados, no movimento Vem Pra Rua a partir de 2013, as grandes manifestações pelo impeachment de Dilma, a campanha de Bolsonaro, a consolidação de uma militância nas redes sociais que deu no debate entre Copolla e Kataguiri.
Que lhe permite brigar em igualdade de condições com a esquerda para também tentar implantar a sua hegemonia cultural.
PS – Roger Ailes, o mago da Fox, acabou massacrado quase 20 anos depois por denúncias de assédio sexual. Fez por merecer, mas é sintomático que tenha sido abatido pela imprensa progressista que fez comer poeira. E numa proporção que talvez não fosse a mesma, não fosse quem foi.
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