Senadores cumpriram seu papel e se redimiram da teatralidade, mas também foram seletivos, fizeram politicagem e apontaram crimes de difícil punição
O relatório final da CPI da Pandemia, pelo menos na síntese lida pelo relator Renan Calheiros , é uma peça coerente, contundente e de algum potencial literário se tivesse sido escrita por um escritor.
Fez relembrar com boa técnica narrativa o calvário bem sabido, vivido pela população brasileira nos dias em que o presidente da República barrigava a compra de vacinas, desqualificava as orientações da Ciência e estimulava o enfrentamento das medidas sanitárias.
Revive de forma muito convincente o momento de angústia em que um governante que deveria liderar a reação coletiva contra uma ameaça de guerra, como sempre fizeram os líderes de suas nações, operou em sentido absolutamente contrário.
Expôs bem a rede de interesses que alimentou os desvarios presidenciais, técnicos, empresários e influenciadores digitais. Bem como a deputados e empresários que procuraram levar vantagem financeira em corrupção no Ministério da Saúde, enquanto o país contava corpos.
Acabou construindo o arco que vai da iniciativa presidencial, passando pelos aproveitadores, até a consequência de seus atos em ações torpes de empresas e planos de saúde, em que se descobriu até experimento de morte.
Se coerente, foi também seletiva. Mirou inimigos visados, aos quais ridicularizou em público ou perseguiu com teorias conspiratórias sem provas substanciais que pudessem ser exploradas.
Nessa lista, estão empresários e técnicos que auxiliaram o presidente num grupo de consultoria sem crime que chamaram maliciosamente de “gabinete paralelo”, os deputados que teriam feito lobby para corrupção no Ministério da Saúde, jornalistas e influenciadores que tinham todo o direito de questionar alternativas de tratamento, num momento em que ninguém, incluindo médicos, tinha certeza de qualquer coisa.
Mais grave, ignorou a corrupção escabrosa de compras de equipamentos e medicamentos nos estados, de que havia provas cavalares de pagamento antecipado de milhões, sem entrega.
É um crime que tenham ignorado, por exemplo, o pagamento de R$ 49 milhões pelo Consórcio Nordeste de governadores por respiradores que nunca foram entregues.
Tendo narrado bem e construído um bom arco dramático, conseguiu alinhavar hipóteses de crimes que parecem instigantes, mas de difícil circunstanciamento, comprovação e punição.
Dos nove atribuídos a Bolsonaro, o que alguns juristas reputam mais sério, estimular epidemia ao provocar aglomeração sem máscara, tem um monte de argumentos contrários, a começar do óbvio de que não se estimula uma epidemia que já existe.
Sua leniência mais óbvia, de compra atrasada de vacinas, se sustenta mal na discussão de trâmites burocráticos, se elas acabaram sendo compradas, se a vacinação andou no nível da maioria dos países e se é difícil relacionar o atraso com intenção de mortes. O senso comum desconfia que houve, mas, diante da justiça, quantas, quais, quando, quem?
E a prevaricação, categorização de crime de omissão diante de algo que se sabe ilegal, é meio complicada se há o registro de que Bolsonaro ligou para o ministro de Saúde, a fim de impedir o processo de compra de uma vacina que, além de tudo, não aconteceu.
No resumo da ópera, a CPI cumpriu o papel, se redimiu da teatralização predatória que desmoralizou em grande medida o trabalho no decorrer dos debates e abriu um leque de possibilidades de especulação e possibilidades de investigação, sem necessariamente punição.
Porque é mais ou menos para isso que elas servem. São políticas, espaço de expressão da minoria para cutucar a maioria e encher o saco dos demais poderes. Por isso a seletividade, muito comum em todas as CPIs, a boa dose de superficialidade em muitas acusações, a maldade com convidados que não são amigos da maioria.
Porque não precisam de resultados absolutamente rigorosos, dado até mesmo o despreparo de parlamentares para o exercício da inquirição e da investigação. É levantar a bola para os órgão de controle correrem atrás.
Por serem políticas, como os processos de impeachment, podem dar em alguma coisa ou não, dependendo da circunstância política e de base majoritária no Congresso.
Um presidente pode ser derrubado por muito pouco comprovável, como a Elba de Fernando Collor ou as pedaladas fiscais de Dilma Rousseff. Ou não, por muito mais, como Bolsonaro.
Mais ou menos como Deus, de quem os senadores se acham meio reflexos, CPIs escrevem certo por linhas tortas.
- Publicado no Estado de Minas, em 21/10/2021
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