Nesta semana, surgiu outra daquelas polêmicas que parecem só existir no Brasil. A cantora morena meio mulata Fabiana Cozza poderia interpretar a preta retinta Ivone Lara no musical sobre a grande sambista?
Veio poucas semanas depois de uma feminista questionar a diferenciação de cores azul e rosa, para menino ou menina, no Kinder Ovo.
E ainda dias após a estreia da nova novela das 9h, Segundo Sol, que se passa numa Bahia só de brancos zona sul do Rio de Janeiro.
Que substituiu outra, mais politicamente correta, que tinha uma cota de personagens negros e gays em boa posição. Até uma anã que acabava tendo sua oportunidade de final feliz com um bonitão de tamanho padrão.
Em se considerando que as minorias estão certas, qual o tamanho ideal das cotas raciais em novelas e produtos de arte?
Contemplando o debate sobre a novela que plantou um Leblon na Bahia, que provocou até uma notificação do Ministério Público do estado à Rede Globo, cogitei se não seria o caso de os autores adotarem os dados demográficos do IBGE.
Se somos, segundo os dados de 2016, 46,7% de pardos, 44,2% de brancos e 8,2% de negros, 51,5% de mulheres e 48,5% brancos, está mais ou menos resolvido o problema. Como também já deve haver estatísticas confiáveis sobre a cota de gays e até mesmo de anões e ciganos — 5%, vá lá —, também está resolvido o problema.
Seria uma coisa tipicamente brasileira, como jabuticaba. Mas aqui tudo é possível.
No mundo civilizado da alta literatura, porém, daqui ou de qualquer lugar do mundo, não.
É impossível fazer novela ou série que se passa numa senzala, por exemplo, com só 8,2% de pretos e 46,7% de pardos. Com muito boa vontade, para produzir efeito dramático, o autor pode fazer com que uma das escravas tenha um filho branco ariano e leve uma boa porrada do marido.
Da mesma forma, se se passar totalmente dentro de um condomínio de alta classe da zona sul, não dá para colocar metade essa mesma proporção demográfica de pardos e negros. Pode-se também cogitar na possibilidade dramática de a filha do senador aparecer com um filho negro retinto e o pai cortar-lhe o cartão de crédito.
Kinder Ovo é mais fácil. Pode-se espalhar quantidades de azul e rosa, para meninos e meninas, pelo cenário inteiro, sem prejudicar o projeto dramático.
Você não verá um negro, gay ou anão em papel de destaque nos espaços essencialmente brancos de Os Sopranos, Donas de Casa Desesperadas ou Breaking Bad, porque não se trata disso.
E não verá brancos na grande Raízes, porque é disso que se trata. E poderá ver um anão em Games of Thrones, porque faz sentido à história e não porque o autor resolveu colocar lá para fazer proselitismo.
E o anão, diga-se, sofre o diabo por ser anão. A começar pelo ódio do pai por ter-lhe gerado.
Porque simplesmente vida de anão não deve ser fácil como em novela. Porque a grande arte, a grande literatura, não mascara as coisas e sabe que pode ensinar muito mais por via da exposição crua da vida do que pela negação.
Fabiana Cozza, que amava Dona Ivone Lara e interpreta lindamente seus sambas, desistiu do papel por conta da polêmica e acabou por voltar atrás e fazer o musical. Ainda bem que passou por cima dessa mixórdia toda.
Deve entender de literatura.
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