O filme Conspiração e Poder (Truth) é uma aula sobre como o mundo do poder reage para transformar o acessório em principal diante de uma grande denúncia. Como um erro ainda que irrelevante, o acessório, abre a guarda para desqualificar o que importa, inverter os papéis e transformar réus em vítimas.
Como inevitável, trata também da dificuldade da imprensa em reconhecer seus erros e de certo determinismo dos jornalistas para estabelecer o que é verdade a partir das circunstâncias, independente das provas.
Começa e termina por ser também um tributo meio tardio e envergonhado a Dan Rather, o grande jornalista norte-americano que comandou e apresentou por mais de 20 anos o jornal nacional da CBS News e o Sixty Minutes. Foi por décadas o mais influente jornalístico da rede, uma espécie de Globo Repórter das quartas-feiras, com alguns decibéis a mais de investigação e credibilidade.
Ícone de imparcialidade e integridade bem traduzidas na interpretação serena de Robert Redford, com um currículo que remonta à cobertura do assassinato de Kennedy e entrevistas com todos os presidentes de seu tempo, dele se dizia que seria capaz de influir nas intenções de voto de um candidato apenas com um olhar de reprovação.
Sua reputação foi arranhada com sua demissão negociada e despedida emocionante em março de 2005, ao cabo dos estragos provocados na moral do jornalístico e da emissora por conta do que trata o filme: a denúncia de que o presidente George Bush usara as relações da família para entrar na Guarda Nacional do Texas, no início dos anos 70, e e assim ficar livre da convocação para a Guerra do Vietnã.
Tinha tudo para ser verdade, segundo a inferência determinista mas quase sempre certa dos jornalistas, com todos os indícios e circunstâncias probatórias, mas o programa estava escorado principalmente em provas frágeis: cópias de dois memorandos que a produtora Mary Mapes utilizou como ponto de partida da investigação e cuja autenticidade não conseguiu provar.
Ela se apoiou na dúvida razoável de quatro grafólogos de renome e encetou um enfiada de depoimentos que dava sustentação lógica à sua história, mas foi engolida por um furacão.
Foi acossada pela mídia concorrente alimentada por blogueiros, no que pode ter sido a primeira grande campanha contra reputações dessa raça, e pelo senso de oportunismo dos aliados do presidente em Washington, então candidato à reeleição no pleito de 2004. (Ele havia recuperado algum prestígio após mostrar mão firme contra o terrorismo que produziu o 11 de Setembro.)
Acabou demitida junto com sua equipe e seus chefes, menos Rather, pelo consenso de que houve falha na sua apuração. Perdeu a carreira e a reputação, mas escreveu Truth and Duty (Verdade e Dever), o livro que deu base ao filme.
Nele, exuma as circunstâncias de sua demissão e denuncia o que seria a grande hipocrisia de todo o meio político e jornalístico a respeito de um detalhe que não prejudicava sua convicção.
Perante a comissão criada pela CBS para apurar se houve intenção política na sua investigação, ela exorciza a polêmica então centrada em detalhes tipográficos dos memorandos com um discurso duro, reforçado pelo nariz, a imponência e o talento de Cate Blanchet:
— Nossa história era sobre o serviço militar de Bush, mas vocês não querem falar disso e sim de tipografias e falsificações e conspirações, porque é isso que se faz quando não gostam da história. Apontam e gritam, questionam sua política, sua objetividade, sua humanidade básica. Porque desejam que a verdade se perca no caminho. E, quando finalmente tudo acaba, chutaram e gritaram tanto, que não lembramos mais qual era o ponto.
Segue-se um diálogo em que, mais que reduzir as provas a seu papel real de acessório, ela defende o salvo conduto de seguir em frente com a denúncia quando o jornalista está certo sobre as circunstâncias:
— Mas você não o provou — devolve um de seus inquisidores mais velhos. — Não provou que o coronel Barnes acomodou o presidente na Guarda. Não provou que os memorandos eram reais. E o peso das provas está sobre seus ombros.
Ela retruca com os dois furos históricos da imprensa americana em cima de papéis e depoimentos secretos de que se duvidada de início: os do Pentágono sobre a estratégia do país no Vietnã e surrupiados da sede do Partido Democrata que deram origem ao Watergate:
— Sendo assim, o (New York) Times não teria publicado os papéis do Pentágono. E o (Washington) Post não teria ouvido Garganta Profunda.
— Barnes não é Garganta Profunda.
— Bem. Barnes confessou que usou seu poder para evitar que os filhos de ricos e privilegiados do Texas morressem no Vietnã.
O homem faz uma pausa solene para concentrar forças:
— Miss Mapes, a senhora não acha que seja possível, apenas possível, que alguns desses homens privilegiados, como diz, podem ter entrado na Guarda por mérito próprio?
Ela concentra o que pode de ar e força para fulminar:
— Não, senhor, não acredito.
Erro jornalístico
Você já deve ter ouvido falar em casos semelhantes, da fina linha que separa o erro da intenção e provoca o mesmo tipo de desvio intencional do principal para o acessório:
- a capa da revista Veja com Dilma e Lula às vésperas das eleições de 2004 (“Eles sabiam de tudo”), mais combatida pelo oportunismo do que pelo conteúdo,
- a liberação das conversas gravadas de Lula por Sérgio Moro, que suscitaram mais discussões sobre a legalidade da divulgação do que o que revelaram de tentativa de obstrução da Justiça,
- o pedido de prisão dos caciques do PMDB, em que toda eventual culpa deles na corrupção foi embaçada pela discussão da competência do procurador para isso.
Mas certamente não ouviu sobre a ginástica interna de editores e jornalistas, nunca devidamente divulgada, para camuflar seus erros. Que era mais intensa até a guerra dos blogueiros na reeleição de Bush e reduziu bastante a partir da vigilância das redes sociais.
Pressionada pela direção da emissora para consertar o estrago, Mary Mapes e a equipe, sob o comando de Rather, se esforçam no limite para fazer a fonte a quem prometeram sigilo absoluto, o coronel Bill Burkett, assumir o erro sozinho. E cometem o pecado mortal para um jornalista de, não apenas revelá-la, expô-la.
É em especial emocionante o desabafo da pobre mulher do homem claudicante e meio doente (o ator Stacy Keach) depois de duas horas excruciantes de gravação em que o induziram a assumir a falha:
— Bill está bem? — Mary pergunta.
E a mulher:
— Não se atreva a me perguntar isso. Ele é um homem doente e você não se importa. Vocês passaram duas horas tentando destruí-lo. Fizeram com se arrastasse diante das câmeras. Obrigaram-no a dizer que mentiu mil vezes. E não era suficiente, queriam mais. Queriam culpá-lo por todos os seus erros nessa história. Querem envolvê-lo num pacote e dizer que a culpa é do Bill. E não é. Vocês sabem disso. Quando vim fazer a entrevista, você disse que seria fácil e era mentira. Você acha que sou boba, que não sei de nada, e você é muito importante. Mas cumpro minhas promessas e não destruo as pessoas que me protegem. Não as destruo e não as humilho. Eu depois finjo que me importo com elas. Para responder a sua pergunta, Bill não está bem, Mas isso vc já sabia.
Lembra o caso de Ibsen Pinheiro, exposto numa capa de Veja de 1993 (“Até tu, Ibsen?”) por ter sido encontrado movimento suspeito de 1 milhão de dólares em suas contas.
No meio da madrugada, descobriu-se que se tratava de movimentação legítima ao longo de anos. Para não perder o 1,2 milhões de capas impressas, o então diretor de Redação Paulo Moreira Leite e o repórter Luís Costa Pinto decidiram arrancar uma declaração do ex-presidente da CPI dos Anões do Orçamento que corroborasse o erro.
Acordado de madrugada, o deputado Benício Gama (PFL-BA) respondeu algo vago — “É fundamental não errarmos nas contas de Ibsen, e não erramos.” — e deu à direção o salvo conduto para o resto da impressão.
É uma variação de se apegar no acessório para camuflar o principal, estimulado pelo determinismo de que determinadas circunstâncias justificam certas inferências que podem virar manchete.
Como Mary Mapes que acreditava que as circunstâncias de que milionários do Texas podiam tudo, inclusive tirar seus filhos da guerra, o editor e o repórter de Veja devem ter considerado que, dado o fato de que o Congresso que saía de uma CPI e algumas cassações tinha muito bandido, era razoável supor que Ibsen também o fosse.
Melão diz
Parabéns por tentar jogar algumas luzes nos ambientes sombrios das redações onde, para sobreviver, as pessoas agem como se não houvesse amanhã.