Como o discurso mitigado por legado cultural e medo da autoridade de um piloto latino perante controladores de voo americanos abateu um voo como o da Chapecoense
Em 25 de janeiro de 1990, uma comunicação mitigada espatifou um avião da aérea colombiana Avianca a 26 quilômetros do aeroporto JFK, em Nova York, em condições muito semelhantes ao do voo trágico da Chapecoense.
Mais especificamente, a tudo o que se começa entender sobre o voo da LaMia que triturou os sonhos dos jogadores e dos que o acompanhavam, a cerca de 30 quilômetros do aeroporto de Medellin.
O Boeing 707 que fazia o voo 052, procedente da mesma Medellin, queimou todo seu combustível em 77 minutos circulando sobre Norfolk, Boston e Atlantic City, numa noite ruim de ventos cruzados. Até a pane seca que apagou seu sistema elétrico e terminou numa aterrisagem forçada, sem explosão, na propriedade do pai do campeão de tênis John McEnroe, em Long Island. Matou 73 de seus 158 passageiros.
Na única tentativa de pouso, após tanto tempo de sobrevoo em atitudes baixas que queimam mais combustível, a torre autorizou a aterrisagem, mas os pilotos depararam com o wind shear, um fenômeno metereológico de variações bruscas na direção ou na velocidade do vento, e o discurso mitigado que os matou.
Sem o piloto automático que calibra a velocidade nessas situações, eles arremeteram para mais uma volta temerária e um diálogo que lembra bem o último da torre de comando com o avião que levava o time de Chapecó.
O controlador de voo:
— Avianca zero-cinco-dois, vou conduzi-los cerca de 15 milhas a nordeste e, depois, de volta à aproximação. Tudo bem com vocês e seu combustível?
O copiloto:
— Acredito que sim, muito obrigado.
O piloto:
— Mostre-me a pista de decolagem.
O controlador:
— Vocês têm combustível suficiente para chegar ao aeroporto?
Comunicação pode derrubar aviões
As investigações apontaram negligência dos controladores de voo, ao não comunicar devidamente à cabine as condições de tempo nessa última tentativa. Mas se detiveram em grande parte na falha de comunicação que o grande repórter da The New Yorker, Malcolm Gladwell, explora num grande artigo sobre comunicação mitigada.
É um dos grandes capítulos de seu ótimo Outlier, sobre o peso do legado cultural na explicação do sucesso. Como que a mitigação cruzada com a influência étnica — em que uma pode ser resultado da outra — pode derrubar aviões.
Ele analisa trechos dos diálogos que precederam a tentativa de aterrisagem já no limite do tempo e do combustível, do ponto de vista semântico e psicológico. Prova como que o copiloto Mariano Klotz mitigou o problema e o discurso ao não explicitar claramente para a torre que tinha uma emergência, como mandava o piloto.
“Estamos ficando sem combustível” não é uma informação de emergência e beira a irrelevância para os controladores de voo, já que todos os aviões, para estarem mais leves, devem chegar ao ponto de aterrisagem quase sem ele.
Encarregado da comunicação com a torre enquanto o piloto se exaure para levar no muque um avião dos tempos de direção hidráulica e roldanas, o copiloto se apega a manuais de rotina e obediência antes de dizer o principal:
— Isto é direto para um-oito-zero no aproamento — informa. — E, ah, vamos tentar de novo. — E só então conclui: — Estamos ficando sem combustível, senhor.
Como diz Malcolm Gladwell, é como se, num restaurante, você tentasse convencer da seguinte forma:
— Sim, aceito mais um cafezinho. E, ah, estou me sufocando com um osso de frango.
Como depôs posteriormente o controlador de voo:
— Apenas interpretei aquilo como um comentário sem importância.
Outro que lidou com o 052 naquela noite também achou o mesmo:
— O copiloto falou de uma maneira muito indiferente… Não havia preocupação na voz dele.
Discurso mitigado
É o que os estudiosos chamam de “discurso mitigado“, a tentativa de uma pessoa acuada de abrandar o sentido do que está sendo dito.
Que nesse caso pode ter sido agravado no embate com os controladores de voo de Nova York, tidos como rudes, arrogantes e autoritários. Premidos pela pressão de dar sequencia às centenas de voos simultâneos que circundam o segundo maior e mais movimentado aeroporto do mundo, são do tipo “faça o que estou mandando”.
No que é o ponto central desse grande artigo, Galdwell especula sobre as razões do meio, o legado cultural que faz com que um pobre copiloto latino, que fala espanhol, se sinta intimidado a ponto de não afrontar a autoridade dos controladores do aeroporto do centro do mundo.
Lança mão do Índice de Distância da Autoridade, um achado do psicólogo holandês Geet Hofstede, que relacionou o nível de submissão à autoridade em diferentes países ao de queda dos aviões.
O medo de afrontar a autoridade, seja de um chefe, do piloto cuja autoridade não se deve questionar ou de controladores de voo prepotentes, explica a temeridade de Klotz para se encaminhar sem reclamar para o fim da fila que lhe seria fatal.
Por sua história, seu meio e os condicionamentos da parte do mundo de onde provinha, não tinha culhão para, como ensina um experiente piloto da Emirates Árabes ouvido pelo jornalista, gritar com os gringos:
— Escuta, cara. Tenho que pousar.
Nenhum piltoto americano aceitaria aquilo:
– Tudo o que eles precisavam fazer era dizer ao controlador: “Não temos combustível para fazer o que você está querendo. Necessitamos aterrisar nos próximos dez minutos.
Quanto maior o IDP, o distanciamento da autoridade em cada país, maior o índice de acidentes aéreos. Não por acaso, um estudo de IDPs dos pilotos do mundo todo, dos anos 90, colocou a Colômbia em terceiro lugar. Em segundo, a Korea cujos jatos da Korea Air caíam ao ritmo de quase um por ano à época dos estudos.
O primeiro lugar nesse índice, para nosso desespero, era o Brasil.
Não parece que seja o caso do acidente da LaMia que confrontou pilotos e controladores de voo de dois países latinos, sem problema de distanciamento da autoridade e timidez para dizer o que é preciso.
Pode ter havido, como é mais comum nessas bandas, é leniência mesmo. O tipo de política em que se coloca menos combustível do que o necessário e, se preciso, omite-se a informação, porque andar com combustível no limite e não obedecer plano de voo pode ser bom negócio
Ramiro Batista diz
Opa, muito bom. muito obrigado.
Se tiver a oportunidade, leia o capítulo do livro citado, Outlier. Ele começa abordando, na verdade, um detalhado acidente da Korea Air, que, no final dos 90, vinha de uma sequencia assustadora de acidentes. O autor é maravilhoso e se aprofunda em detalhes em que ninguém chega, de uma forma muito cristalina. Chega a doer ler a forma como o pobre do copiloto da Avianca caminha para o abatedouro, numa tremenda inocência. Leitura imperdível também acompanhar o zilhão de informações que um piloto da Emirates processa para desviar um voo e salvar uma mulher infartada.
José Fernandes dos Santos Neto diz
Muito bom o texto! Em análises sobre sobre acidentes são elencados apenas as falhas mecânicas e humanas. Definir as falhas mecânicas talvez seja mais fácil porque elas são tangíveis. Nas falhas humanas há também os elementos concretos que permitem defini-las como as avaliações periódicas, os treinos, etc. Ainda assim este tipo de falha em os seus elementos culturais que são menos palpáveis.
Acredito que elencar os elementos semânticos, culturais e psicológicos presentes na comunicação para análise dos fatores em falhas humanas são importantes para que aviões parem de cair por estas falhas.
Gostei do texto também por que foi o primeiro que li sobre acidentes em que a forma de comunicação foi elencada na falha humana e principalmente por saber que já existem estudos sobre os seus impactos na aviação.
Alberto Wagner Rodrigues diz
TODA E QUALQUER COMUNICAÇÃO DE RISCO, DEVE SER DITA CLARAMENTE, SEM DEIXAR MARGEM PARA EQUÍVOCOS A SEREM MITIGADOS PARA QUANDO VIRAREM QUESTÃO. ESSA É UMA DAS PRIMEIRAS COISAS QUE SE ESTUDA EM CURSOS DE AVALIAÇÃO DE RISCOS.
Adauto diz
Acusam os alemães e mesmo alguns outros países europeus de que seus habitantes são muito literais. Mas num caso desses deveria haver uma codificação que evitasse o “discurso mitigado”, mas ao mesmo tempo deixasse bem claro para as partes interessadas o que se passava. Zun Tsu, em seu livro “A Arte da Guerra” afirma que se o soldado que recebeu determinado mando não cumpriu a sua parte, a culpa é do comandante. Acho que aqui se passa o mesmo, em que o avião que chegava ao Aeroporto não conseguiu deixar bem clara sua posição de risco. Pior para a Chapecoense.
Cristiano Marques diz
Ao menos desta vez a culpa não foi nossa.