A mão pesada de Alexandre de Moraes sobre o Telegram coincide com os vídeos de Volodymyr Zelensky e a ideia de que um celular pode ganhar eleições e guerras
A história da política e da guerra desde que o mundo é mundo é também o da evolução dos meios para tomada e manutenção do poder. Das armas para o dinheiro e depois para a comunicação.
O homem tomou territórios a pau, pedra e pólvora. Depois descobriu que, ao invés de destruir o inimigo, era melhor explorá-lo. E, por fim, manipulá-lo.
Alexandre de Moraes que o diga. Ao descer sua mão de ferro sobre o Telegram, sob o risco de explodir o direito de alguns milhões para cercar meia dúzia de gatos pardos, passou recibo do quanto comunicar passou a ser determinante para vencer eleições ou guerras.
Não por coincidência, nas circunstâncias da guerra da Rússia contra a Ucrânia, definitivamente o ápice da expressão midiática como meio de destruição em massa. Em que um inimigo sem armas e dinheiro suficientes transforma o que seria um passeio do gigante opressor numa sequência de perdas desastrosas.
Com o gogó e um celular, Volodimir Zelensky jogou o mundo ocidental contra o detentor das ogivas nucleares que poderia dizimá-lo. Inspirou o bloqueio radical de todos os seus canais de respiração com o mundo tecnológico, no grau de eficiência com que os antigos sufocavam o inimigo explodindo pontes, linhas de suprimento e radares.
Nossa história política começou na matança de índios e terminou no Telegram.
Matar índios foi o primeiro bom negócio dos portugueses, antes de explorá-los. O dinheiro mandou um bom tempo desde o Império e até a chegada das urnas, na política dos coronéis. Até pelo menos 2014, na liquidação de caixa dois recíproco de Dilma Rousseff e Aécio Neves, que gastaram mais do que declararam.
É verdade que, desde Victor Hugo, se sabe na sua frase lapidar que “nada é mais forte do que uma ideia cuja hora é chegada”. Entre nós, também, sempre houve uma ideia por trás das armas e da força da grana que ergue e destrói coisas belas.
Desde que se matavam adversários e se roubavam urnas na República Velha, era necessário alguma força de convicção que justificasse o assassinato e o roubo para a ascensão ao poder.
- Getúlio Vargas vendia a tese de traição dos coronéis de São Paulo e Rio antes de suas armas e do dinheiro para comprá-las, claro.
- Em tempos de paz, Juscelino Kubitscheck prometia fazer “50 anos em cinco” como pano de fundo de um processo eleitoral sabidamente corrupto.
- Os militares de 64 retomaram o recurso das armas, mas com fuzis na mão e uma ideia na cabeça, a ameaça do comunismo.
Foi a partir da modernização das técnicas de propaganda comercial para interpretar desejos, nos anos 70, que a mensagem passou a ser mais importante que o meio. A embalagem mais relevante que o conteúdo viria a ter impactos profundos no marketing político a partir daí.
Até o final dos anos 80, da redemocratização e da disputa histórica de Lula e Collor de Mello na eleição de 1989, o embate eleitoral ainda se dava em torno de argumentos de razão política. Tanto que os debates eleitorais ainda eram o principal canal de conhecimento dos candidatos.
Foi nos anos 90, a partir de Collor, que começaram a surgir por aqui as técnicas mais sofisticadas de manipulação de imagem.
Pode-se tomar como marco relevante as patranhas de Duda Mendonça para transformar o sombrio Paulo Maluf num candidato arejado de ternos claros e óculos finos, tutor do primeiro candidato brasileiro de laboratório, eleito o primeiro prefeito negro de São Paulo, Celso Pitta.
Ainda tempos em que máquina partidária e caçambas de dinheiro, até para pagar marqueteiros como Duda, eram mais determinantes que a propaganda. Um status quo que viria a perdurar até disputa Dilma/Aécio, em constante evolução em termos de cooptação partidária e volumes em caixa.
Por cima e por baixo dos panos. A história das eleições dos últimos 50 anos é também da evolução dos mecanismos de corrupção para produção de caixa dois — da propina direta às empresas de fachada, que chegaram à sofisticação do Mensalão e do Petrolão. Como também, last but not least, da ascensão dos marqueteiros pop star, tão caros quanto todo o restante das estruturas de campanha.
O triunfo definitivo da mensagem sobre os recursos materiais pode ser determinado pela votação do Brexit e a eleição de Donald Trump, que impulsionou a onda conservadora que elegeu outros populistas pelo mundo, incluindo Jair Bolsonaro.
Uma arsenal de recursos tecnológicos e manipulação diabólica de dados em redes sociais, para, mais que fazer a mensagem chegar ao eleitor, criar públicos, conflitos e necessidades psicológicas que tornassem o candidato objeto de desejo e o adversário, de ódio.
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É sintomático que Donald Trump não tenha gasto um tostão próprio e Jair Bolsonaro tenha feito a campanha mais barata desde que dinheiro ficou mais importante que armas na política brasileira.
Foi tocada em família sob a liderança de um filho esperto (Carlos) que importou as mandingas do gênio do Brexit e do Trump, Steve Bannon, movimentando mais verbo — desejo e ódio espontâneos — que verba. Digno de registro que a campanha tenha mobilizado instintos primitivos do ser humano de ter poder pessoal pelo uso de… armas.
A ideia cuja hora era chegada e nenhum outro candidato ousou — a destruição do PT — encontrou os meios eletrônicos disponíveis em sua melhor hora. Tornou irrelevantes a compra do voto e a arma poderosa da estrutura partidária, até então determinantes.
Não se tem notícia na história das campanhas eleitorais da era moderna de tanto anônimo eleito deputado com até milhões de votos (Joyce Hasselmann, Janaína Paschoal) montado num celular e nessa ideia força na cabeça. Do zero, sem partido e alianças, um vice monocromático militar, Bolsonaro elegeu os governadores das principais capitais e formou a maior bancada do Congresso.
Pode se discutir hoje que 2018 tenha sido um ponto fora da curva a não se repetir, dado o fiasco do apoio de Bolsonaro aos candidatos nas eleições municipais de 2020 e a cadeia de erros que desmoralizaram a mensagem e ressuscitaram seus alvos (Lula e o PT).
Superada e gasta a ideia de erradicação dos dois, ele parece não ter outra para colocar em seu lugar e precisará mais do que uma boa mensagem para disputar com alguma chance a próxima eleição. Sem contar que seus concorrentes aprenderam o caminho das pedras, no conteúdo e nos meios.
“Erradicar Lula e o PT” ficou do mesmo tamanho de outra ideia agora tão ou mais poderosa, a de “erradicar Bolsonaro da face da terra”. E ambas em disputa com uma terceira, proporcionalmente arrasadora: “nem um, nem outro”. Como já diz Diogo Mainardi, “o voto nulo é lindo”.
Não à toa, há bom tempo Bolsonaro vem tratando de ressuscitar, renovar e aprimorar os mecanismos de compra de apoio das bancadas parlamentares e do voto que elas arrancam nos grotões. Depois, diga-se, de tentar manter seu poder pelo meio antigo, as armas, nas tentações de golpe que ensaiou.
No que é de longe seu maior acerto, porém, em nenhum momento descuidou de sua rede de comunicação, a mais poderosa no cenário. Em provocação diuturna e capilaridade tentacular, está a alguns números e anos luz à frente da de seus adversários. Era, até Zelensky, o líder mundial de maior presença no Telegram.
É ela que o mantém de pé, muito mais resistente e viável eleitoralmente do que deveria depois de tantos erros. É ela que tira o sono de Alexandre de Moraes, atrai e dribla sua mão pesada, desde a instalação do inquérito escabroso das fake news que acabou resultando no cancelamento do Telegram.
Que outra melhor prova de que 2018 não foi só um tropeço ocasional no avanço das armas da comunicação sobre todas as outras nos arsenais de conquista e manutenção do poder?
> Publicado no Estado de Minas, em 22/3/2022
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