Em uns 40 anos de convivência com o universo da política, as manhas de comunicação dos políticos e o ofício penitente de entender suas motivações, internas e externas, aprendi como nasce, cresce e aparece uma Marielle.
Em geral, começa a se envolver com uma comunidade e sua causa, a encantar os que a cercam com certo carisma nato e uma convicção sincera. Depois a se encantar com sua voz e consigo mesma, naquele ciclo em que a vaidade retroalimenta a convicção e ajusta o tom o discurso para convencer e encantar cada vez mais. A quem a cerca e a si mesma.
Uma vez encantando e se retroalimentando, ajusta o discurso à plateia e aí tropeça na solução e nos problemas de quem se aventura nesse ramo.
Ao ajustar o discurso para ampliar a plateia, é preciso ser simples. Alguém já escreveu que, para ter sucesso e produzir um best-seller, é preciso escrever de forma que um adolescente de 14 anos entenda.
Além de simples e compreensível, é preciso deixar muito claro de que lado que se está. Quem quer ampliar apoio não pode emitir qualquer dúvida, qualquer senão, de que não esteja do lado de seus liderados e comungue com eles um inimigo comum.
Daí, é preciso eleger um inimigo comum e, tanto quanto possível, negar a ele qualquer possibilidade de estar certo.
Jogo político.
No caso dessa Marielle do Rio de Janeiro de todas as desgraças, por exemplo, ao se engajar de corpo, alma, coração e carisma, na causa das mães que perdem filhos, envolvidos ou não com crimes, ela escolheu a polícia como a grande vilã e procurou negar-lhe qualquer argumento em contrário.
Não importa se o inimigo, a polícia neste caso, tem suas razões. Que no peito de policiais também miseráveis e mal pagos, filhos de outras mães também sofridas do outro lado, também bata um coração.
Para quem se arvora a representar um lado, não é que o outro lado não importe. É que a semente do seu discurso não brota no terreno adversário. E que esse lado cuide de arranjar o seu tipo de Marielle, mais afinado com suas causas.
Com essa afinação e essa clareza, ela atingiu o nervo das famílias que vêem a polícia como o grande inimigo e, para além delas, o coração de uma plateia mais ampla, o pessoal do asfalto dos bairros da zona sul que tem boa razão para não gostar da polícia.
A população da zona sul — que lhe deu a maioria dos 46 mil votos e já elegeu outras Marielles, como Marcelo Freixo — é a herdeira da geração que enfrentou os militares no regime que se esvaiu nos anos 80. Tem bons motivos para duvidar da polícia que herdou a truculência dos quartéis e chutava as portas dos barracos nas favelas a cada vez que um pobre chegava com um videocassete, mesmo com Nota Fiscal.
Aquela geração, jornalistas à frente, aplaudiu quando o traficante Escadinha fugiu de helicóptero do presídio da Ilha Grande e cantava com Chico Buarque os versos da linda O Meu Guri, da mãe que chorava pelo filho que lhe trazia do asfalto bolsas cheias de joias e documentos.
“Chega suado e veloz do batente
Traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar
Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!”
Não há nenhum mal que tenha tomado um lado e de nenhum modo pode ser culpada por suas opções. No jogo político, é muito difícil obter resultado colocando o pé em duas canoas.
O que desafia meu prazer de análise é essa ingenuidade nata dos touros que perdem a noção da força que têm e calculam mal o risco que corre.
Responsabilidade jornalística
Quando terroristas islâmicos metralharam jornalistas na redação do Charlie Hebdo, o pasquim que publicava charges desmoralizando Maomé, houve uma repercussão mundial proporcional, guardadas as proporções, à da execução da vereadora.
Naquele bombardeamento de unanimidades justas e sem restrições a algo bárbaro, não havia espaço para discutir as responsabilidades dos jornalistas abatidos. Não se podia discutir a natureza do trabalho deles em proporção ao ataque desmedido que sofreram.
Me lembro de um único artigo de jornal fora da curva, em que o autor dizia sem medo que os jornalistas deveriam saber do risco que estavam correndo ao atacar pilares sagrados de uma religião e seus fiéis sabidamente fanáticos, capazes de tudo. É como você dirigir em noite de chuva falando ao celular. Você releva o risco que está correndo.
Aqui, pouco me importa discutir as razões da polícia do Rio, que já tem defensores suficientes nas redes sociais, assim como não discuto que o sol nasce todos os dias sobre suas belas praias.
O que curto e busco é entender quando e por que, a certa altura, o inebriamento com a causa e consigo mesmo faz de lideranças que poderiam ser faróis de seu tempo perderem a noção do perigo. E calibrarem o discurso para não morrerem antes da hora.
Marielle deveria saber, como sei, que o mundo é naturalmente mau.
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