Saiba como escrever um ensaio envolvente como uma história de ficção com a competência jornalística e literária de Malcolm Gladwell.
Em julho de 1999, o herdeiro mais famoso dos Kennedy, John F. Kennedy Júnior, morreu junto à mulher e a cunhada num mergulho em parafuso do helicóptero que pilotava, sem muita experiência, em condições climáticas ruins.
Para entender a diferença entre engasgar e entrar em pânico a partir do que passava na cabeça do piloto na hora do acidente, Malcolm Gladwell contratou um voo no mesmo tipo de helicóptero e nas mesmas condições sobre o mar da ilha de Martha’s Vineyard, na costa leste dos EUA. E pediu ao piloto que descesse me espiral.
Essa mistura de jornalista, escritor apaixonado por uma grande história e aprendiz de cientista interessado em fenômenos triviais que definem uma existência explica muito o que faz a diferença entre seus ensaios e os restantes.
Uma coisa é escrever ensaio. Outra coisa é escrever ensaio como Malcolm Gladwell, a minha mais convicta influência sobre o que é escrever bem — no sentido de leveza, sedução e convencimento — livros de não ficção.
Ele juntou essa mistura para contar histórias bem contadas de personagens extraordinárias para iluminar trivialidades como uma aventura do conhecimento.
Tem uma visão para as banalidades do cotidiano e o não percebido pelo senso comum que torna seus textos sempre inusitados e originais. Como escreveu o Chicago Sun-Times:
— O grande talento de Gladwell é voltar a atenção para coisas que parecem triviais e encontrar nelas lições valiosas sobre o que nos torna humanos.
Obcecado desde criança para entender o que se passa na cabeça dos humanos, desenvolveu um talento impressionante para desmontar verdades estabelecidas ou certezas absolutas produzidas de informações prejudicadas pelas limitações interpretativas do homem. Seja por falta ou excesso de informação.
— Poucos reflexos culturais são mais arraigados do que a ideia de que uma foto corresponde à verdade — escreve.
Difícil encontrar um outro escritor que seja capaz de discorrer páginas a fio para desvendar o sabor do ketchup, como faz em um dos ensaios geniais da coletânea de título que resume bem suas obsessões: O Que Se Passa na Cabeça dos Cachorros (What The Dog Saw).
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Você não vai parar de ler sua elucubrações divertidas e elegantes para entender a mistura sutil de doce e azedo que está por trás do seu vício, e em especial de determinada marca. Por que nenhuma outra marca conseguiu rivalizá-la na satisfação do paladar popular?
Também não vai largar a história da evolução das tinturas de cabelo na segunda metade do século XX, nos Estados Unidos, e de como elas foram causa e reflexo de grandes transformações culturais. Que começou numa vontade de escrever sobre xampu.
E vai se debruçar sobre suas páginas impressionado de saber que as mamografias são tão imprecisas quanto imagens de satélite e o quanto há de débil na ideia de que uma fotografia pode ser testemunho confiável de qualquer coisa. E isso, nos anos 90, quando não havia photoshop.
Ensaio como ficção
O que o faz tão especial é a competência para dar tratamento ficção à abordagem dos dados, exemplos e histórias que reúne para comprovar sua tese.
Opera no plano dos personagens, da trama, do mistério e de reviravoltas surpreendentes, a partir de investigação jornalística. Seu herói é o problema, sua jornada do herói a viagem da descoberta.
Ensaio, na definição mais consagrada, é um texto de reflexão longo em que se tenta esgotar um tema com base abundante de dados que confirme sua tese e forte impressão pessoal.
O modelo consagrado, mesmo em grandes escritores, é a da apresentação da tese antes de enfileirar dados que a comprovem e levem à conclusão onde se estabelece a opinião pessoal.
Gladwell não faz muito diferente dessa estrutura, mas com a sabedoria ficcional de contar histórias empolgantes para sugerir, pela ordem, dados, tese, conclusão. Uma grande história de um grande personagem é que ilumina cada passo e cada inferência.
Seus livros sempre começam e terminam com uma história extraordinária de um personagem exraordinário, abrindo e fechando uma série de outras em que se mergulha como se tivesse lendo um romance de camadas sobrepostas de surpresas e descobertas.
Em Fora de Série (Outliers), por exemplo, você começa por viajar nas descrições quase poéticas da vida cotidiana de um povoado secular da Itália (Roseto Valfortore) que se transferiu séculos depois para os arredores da Pensilvânia, nos Estados Unidos.
Para decifrar porque, neste povoado, com em nenhum outro, os vínculos comunitários tinham sido determinantes para reduzir os índices de colesterol e doenças cardíacas, com em nenhum outro lugar do mundo.
É o ponto de partida para entender as razões do sucesso a partir de condicionantes culturais — legado, história, sorte, circunstâncias geográficas — e chegar a condicionantes da história da Jamaica que definiu o sucesso de seus próprios antepassados.
Outro escritor, menos sofisticado e surpreendente como ele, começaria categoricamente pela tese, alinharia pesquisas e exemplos para comprová-la e passaria de raspão pela histórias de apelo emocional e literário.
Toda a fantástica descrição que avança desde as origens do povoado, séculos atrás, antecipa um pequeno dado da tese do médico Stewart Wolf, especialista em estômago da universidade de Oklahoma, que descreveu o fenômeno num estudo científico importante, visto a princípio com ceticismo pela comunidade científica.
Outro escritor começaria falando do médico e seu estudo, claro.
Sua tese vem sempre depois, sugerida. Vai sendo debulhada e intuída capítulo a capítulo, a partir de roteiros surpreendentes de personagens reais, históricos ou cotidianos, que comprovem o dado técnico, a verdade histórica, a condicionante geográfica, os experimentos científicos.
Em Blink, sua ousada experiência de tentar entender a competência de avaliar por instinto, pensar sem pensar numa fração de segundo, começa com a fascinante história da compra pelo Museu J. Paul Getty, da Califórnia, de um dos raríssimos Kronos, o exército de terracota descoberto nas tumbas do primeiro imperador da China.
A conclusão a que vai se chegar, depois de uma sequencia de enganos até que um especialista decifra o que vai assustar imprensa e especialistas, é dessas experiências que, como num grande livro de suspense, não convém dar spoiler.
O fechamento/conclusão/prólogo, como em todo ensaio que tem a responsabilidade de concluir a tese anunciada na abertura/introdução/epílogo, também é uma história, grandiosa ou trivial, emblemática de tudo o que se escreveu.
Em Outlier, ele pega nada menos a história de sua mãe e sua tia, gêmeas, para clarear como seus legados culturais e da Jamaica definiram o que determinou o sucesso de uma e outra na vida. E resumir tudo o que havia dito sobre os tantos personagens fascinantes que perfilou em todo o livro.
É nessa pequena obra prima que vai discorrer sobre a tese das 10 mil horas de treinamento que explicam o sucesso da maioria dos experts. Filósofo pop, ele pega o exemplo dos Beatles e de Bill Gates para revelar que, antes de serem conhecidos, já tinham ralado mais 10 mil horas de esforço e fracasso.
Limites da comunicação
Ele já tinha ralado mais de 10 mil horas antes de fazer sucesso como repórter na mais sofisticada publicação de exercício intelectual do mundo, a The New Yorker, mistura de crítica, reportagens investigativas e ensaios produzidos sem pressa e sem limites de tamanho.
Criada em 1925 para ser uma crítica de costumes e cultura de Nova York, virou quase uma academia que lustrou as biografias dos maiores escritores do mundo, que passaram por ela: J. D. Salinger, Vladimir Nabokov, John Updike, Philipe Hoth, Haruki Hurakami.
Escrever nela é se comparar com os maiores jornalistas escritores, como Tom Wolfe e Gay Talese, gênios do jornalismo que utiliza recursos de ficção para contar histórias reais.
Foi por ela que Hannah Arendt cobriu o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961, e cunhou a expressão “banalidade do mal”, base de uma das obras mais influentes do século XX, Eichmann em Jerusalém, de 1963.
Foi o ano em que nasceu, em Gosport, na Inglaterra. Criado no Canadá, onde se formou em História pela Universidade de Toronto, 21 anos depois, queria ser advogado ou publicitário, antes de descobrir que escrever poderia ser divertido. E uma profissão.
Começou na pequena The American Spectator, de Indiana, antes de se transferir para a Washington, onde trabalhou como freelancer e terminou no Washington Post como jornalista especializado em Ciências.
Chegou a The New Yorker em 1996, onde produziu uma acachapante série de ensaios/reportagens assustadores pela originalidade, depois reunidos no hoje meu livro de cabeceira, O Que se Passa na Cabeça dos Cachorros (What The Dog Saw)
Depois vieram seus livros investigativos, extensão da sofisticação de seus ensaios: O Ponto de Virada / The Tipping Point (1999), Blink – The Power of Thinking Without Thinking (2004), Fora de Série / Outliers (2007), Davi e Golias / David y Goliat (2012) e Falando com Estranhos / Talking With Strangers (2018).
Em comum, eles têm a inquietação de jornalista burilada pelo talento de escritor misturada a uma curiosidade de cientista por entender os limites da comunicação humana — a mecânica psicológica mais funda que acaba por explicar quase tudo por que algumas pessoas, mais que outras, são bem sucedidas.
Os livros
Qual a lógica por trás da propaganda boca a boca que impulsiona epidemias de consumo, como tenta desvendar no primeiro, O Ponto de Virada, quando nem havia redes sociais?
Ele parte da mecânica da disseminação do vírus de epidemias de sífilis e gonorreia em Baltimore e Colorado, para investigar como que um sapato fora de moda caiu no gosto de uma rapaziada irreverente no centro de Manhattan e, em dois anos, se espalhou como febre por todos os grandes shoppings do país.
>>> Veja o artigo O Ponto de Virada do vírus do boca a boca nas epidemias sociais
Em Blink, ele tenta entender o processo por trás das infinitas equações do inconsciente para produzir julgamentos instantâneos. Para provar que o julgamento rápido, produto da sabedoria e da experiência, pode ser tão eficiente quanto aquele pesando e refletido após longa maturação.
Como o vendedor experiente que percebe nos primeiros segundos de contato com o cliente se a venda vai prosperar. Ou o especialista em obra de arte que percebe no primeiro contato uma falsificação que enganou uma sequencia de analistas e jornalistas antes dele, como está na excelente história que abre o livro.
>>> Leia em Blink, a arte de decidir sem pensar e seu marketing pessoal
Em Fora de Série, ele se intromete a investigar porque algumas pessoas são mais excepcionais do que as outras e comprovar cientificamente a tese de preparo e oportunidade, aquela em que o sucesso ocorre quando a pessoa certa encontra o lugar certo ou vice-versa.
Desmonta a tese de que o sucesso depende apenas de esforço pessoal, como nas histórias românticas do sujeito que se fez sozinho. Ele é condicionado por circunstâncias geográficas, legados culturais, herança familiar, influência dos amigos e até de questões étnicas.
>>> Leia em Preparo e oportunidade: o que explica o sucesso e o fracasso
Davi e Golias trata da vantagem das desvantagens. Até que ponto as deficiências as adversidades não foram uma vantagem na competição para certas pessoas aparentemente mais fracas? Até que ponto o preconceito e a desconfiança contra suas potencialidades não os tornaram mais fortes?
Parte da tese absolutamente surpreendente de que o jovem Davi, com a agilidade e sua funda, tinha mais vantagens que o gigante Golias, paramentado com o excesso de peso de armas e armaduras que lhe tolhiam os movimentos.
>>> Leia em: Davi e Golias, Marina e a vantagem do marketing das desvantagens
Falando com Estranhos é o ápice de sua abordagem dos limites da interpretação na comunicação humana, o perigo das interpretações apressadas que redundam em tragédias a partir de falsos sinais do outro que tomamos como verdadeiros.
A abordagem policial de uma negra ao volante que resultou em morte, o estuprador e o espião que enganaram seus chefes e suas vítimas por anos, o investidor picareta que deu prejuízo por décadas, o estupro numa festa de estudantes bêbados e cúmplices.
A coletânea O Que Se Passa na Cabeça dos Cachorros, que recomendo como introdução insubstituível de sua obra, tem como subtítulo E Outras Aventuras:
— Eu chamei essas histórias de aventuras porque é isso que elas pretendem ser.
Sim, são aventuras impressionantes do conhecimento, cheio de reviravoltas e iluminação a cada curva.
>>> Leia também meu artigo sobre o empolgante caso do avião colombiano que caiu nos arredores de Wisconsin por problemas de comunicação na cabine derivada de condicionantes culturais do piloto: Comunicação mitigada derrubou um Avianca como o da Chapecoense
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