Você deve estar achando, como a maioria da informação publicada e comentada, que a defesa do AI-5 foi o ponto mais importante da entrevista de Eduardo Bolsonaro a Leda Nagle que repercutiu até em jardim de infância.
O tema massacrado pela grande mídia como cacoete autoritário típico da família presidencial acabou como grande cortina de fumaça de duas questões de fundo mais vibrantes que passaram despercebidas:
- O talento instintivo dos Bolsonaro para disparar contra seus inimigos e mobilizar a tropa a cada crise que eles mesmo criam.
- A guerra pelo controle das mídias sociais, que o bolsonarismo domina a larga distância da oposição.
No ponto mais duro da entrevista, que tremeu as bases da República ofendida, Eduardo Bolsonaro estava fazendo o que a família presidencial sabe fazer muito bem, por pragmatismo ou instinto de sobrevivência.
Qual seja, a de disparar contra o PT e a imprensa para transferir responsabilidades e, ao mesmo tempo, levantar o ânimo da tropa nas redes sociais um tanto quanto divididas pelos últimos estragos da verborreia do presidente.
Eduardo ecoava na entrevista de quinta-feira o que pai começara na terça e na quarta, ao ameaçar a Folha de S. Paulo com a suspensão de assinaturas e a Globo no mais grave ataque já feito por um presidente a um veículo de comunicação.
Independente de não ter razão no primeiro caso e ter muita no segundo, para tratar de uma apuração preguiçosa que o enrolou no caso do porteiro que deu acesso aos assassinos da vereadora Marielle, ele escondia a intenção real.
Que era não tratar, pela ordem:
- das gravações que voltaram a circular no início da daquela semana, sugerindo que Queiroz, o fantasma das transações suspeitas com o irmão Flávio, ainda tinha alguma influência nas opções da família
- da polêmica em torno do vídeo escabroso postado e retirado do ar, em que o leão Bolsonaro enfrenta as instituições pátrias, incluindo o STF, como hienas.
Mas teve também a parte a que ninguém prestou atenção, porém, que explica quase tudo.
Nela, Eduardo se estendeu na tese de Olavo de Carvalho segundo a qual a esquerda que lhes faz oposição tem o domínio dos grandes meios de produção de conhecimento — imprensa, sindicatos e universidades —, mas não da internet.
O domínio do bolsonarismo nas redes sociais, das tias para ele espontâneas impulsionando o WhatsApp em paixão por seu pai, estaria, segundo ele, por trás da guerra que se trava nos meios tradicionais contra a família.
— Eles nunca viram um movimento espontâneo em favor de um político — disse. — Estão acostumados a ver um movimento pago em favor de um político
Controle das redes sociais
Eu produzi alguns artigos na campanha e no início do governo, demonstrando como o petismo, que perdera o controle dos movimentos de rua para o Movimento Brasil Livre e seus satélites, de fato perdera também o das redes sociais para o bolsonarismo.
>>> Leia:
Democracia direta de Bolsonaro era sonho das esquerdas
Rede de Bolsonaro faz debate 24 horas por dia
Haddad perde a guerra das redes, que requer novas competências
O cabo de guerra mais recente e mais vistoso nessa briga é a CPI das Fake News na Câmara dos Deputados, criada para ampliar a discussão sobre o uso de dados irregularmente pelas redes sociais (Facebook, sobretudo) e apurar responsáveis por eventuais abusos contra reputações.
Dominada por parlamentares de esquerda e aproveitada por ressentidos com o governo, como Alexandre Frota, é palco de uma batalha feroz para desmontar no grito a máquina bem sucedida bolsonarista, que começou na campanha e se manteve no governo.
No fragor da batalha, acusam um sindicato do terror instalado dentro do Palácio, embora se esqueçam de que a campanha do candidato das esquerdas, Fernando Haddad, também fez também uso de disparos irregulares.
Pode-se dizer que o caso de Haddad, primeiro punido pela Justiça Eleitoral, foi mais de incompetência, num país em que as eleições são fraudadas desde a República velha e vencidas, não por coincidência, por quem teve maior capacidade de fraudar.
Para ficar num só exemplo, a campanha que elegeu Dilma Rousseff em 2014 gastou quase três vezes por debaixo do pano o valor de recursos não contabilizados pelo segundo colocado, Aécio Neves. Como desde a República velha em que se roubavam urnas, é claro que ele não reclamou.
A de Bolsonaro sabidamente usou os mesmos recursos de Haddad, mas com uma sabedoria de quem já estava no mercado digital havia mais tempo. Sabe-se que o PT, pioneiro no uso de blogs para fazer guerrilha virtual, chegou atrasado e desaparelhado às redes sociais. Mais ainda, ao WhatsApp, estrela da última campanha.
A CPI das Fake News se comporta, no caso, como se um Aécio Neves decidisse acusar Dilma Rousseff de corrupção na campanha, esquecendo-se do que fizera no verão passado.
Falar para convertidos
A questão de “falar para convertidos”, na boa expressão da crítica política dos jornais, é tática velha para juntar a tropa contra os inimigos.
Ela se apoia em geral num tipo de terrorismo para reacender em seus aliados o medo do inimigo comum em cima do qual construiu sua base e sua vitória.
Lula é o exemplo sofisticado que citei em vários artigos, que elevou a nível de excelência a arte de escolher o inimigo para motivar a tropa a cada vez que se via metido numa crise.
Leonel Brizola dizia que ele era o “tigre de apartamento” que as elites colocavam na janela para assustar a classe média, nos primeiros anos das lutas de Lula no sindicato. Depois ele cresceu, apareceu e transformou a classe trabalhadora no tigre que colocava na janela sempre que necessário.
>>> Leia: Lula e Dilma voltam a colocar o tigre do MST na sala
Chegou a ficar tão previsível, que bastava ver a cor da camisa para saber se estava ou não mobilizando a tropa. Era com a camisa vermelha, marca registrada de seu partido, às vezes até com boné da mesma cor, que se fazia compreendido pelas massas nos momentos de aperto.
Foi com ela que saiu a campo para recuperar terreno quando o Mensalão lhe ameaçava comer as canelas e se reelegeu ano e meio depois. Foi com ela que saiu a campo para salvar a campanha de Dilma Rousseff, na reta final da eleição de 2014, em processo de arrefecimento por uma militância de corpo mole.
Foi com ela que disparou impropérios e preconceitos grosseiros nos palanques contra o adversário Aécio Neves — playboy, drogas, multa de trânsito etc — que não ousaria dizer quando estava de colarinho branco entre a elite que adorava assustar.
Por ironia do destino, mas também previsível, ele elegeu a Globo como o inimigo que desde Brizola os políticos adoram escolher. Ela tem o tamanho e ao mesmo tempo a vulnerabilidade que dá a eles a capacidade de ombrear e ostentar valentia sem riscos.
A penúltima vez que fez uso mais potente da tática foi quando se refugiou na sede do PT, em São Paulo, assim que foi dispensado do depoimento a que fora levado em condução coercitiva até o aeroporto de Congonhas.
Das poucas vezes em que não estava de vermelho numa situação desse porte, mas com a estrela no peito que não deixava dúvidas de seu engajamento, emitiu algumas senhas contra a presença da Globo. Foi bastante para que, no dia seguinte, militantes em vários pontos do país atacassem instalações da emissora.
A última foi o discurso de despedida da vida livre, no caminhão de som às portas do sindicato do ABC, momentos antes de se entregar à polícia. Pego de surpresa pela ordem de prisão de Sérgio Moro, refugiou-se na sede do sindicato um dia antes, pode não ter tido tempo de trocar a camisa.
>>> Leia: O discurso de Lula contra a imprensa e a arte de eleger inimigos
Comunicação política 4.0
Lula e seu partido é, ou foi até a última campanha, um caso de economia política 1.0, do tipo que ainda acreditava (acredita?) em sair de caravana para juntar gente.
Os filhos de Bolsonaro, que impulsionaram um pai um tanto quanto atônito, são da fase 3.0, quase 4.0, que está virando pelo avesso o comportamento do consumidor.
Como também escrevi em Como Comunicar na era pós digital da distração e da deslealdade, o novo consumidor é infiel a marcas e ao mesmo tempo escravo de suas afinidades passageiras. Mas capaz de formar tropas apaixonadas em seus guetos, tocadas pelo fogo da paixão imortal enquanto dura.
Transportar táticas de mercado para a política tem também seus limites. O cultivo de nichos funciona muito bem para quem compra um perfume ou um curso de yoga e oferece um manancial de estratégias em campanha, mesmo eleitoral.
Mas não tem como funcionar no governo, quando o eleito não pode falar para somente quem comprou seu perfume. Ninguém se incomoda que Silvio Santos seja exaustivo no proselitismo de seu Jequiti e ele pode até chamar suas eleitoras de consultoras, no caso de se candidatar a um cargo.
Mas, eleito, ele precisa falar para além de quem compra Jequiti. Para, no mínimo, deixar de ser ridículo.
Então, se você é vendedor de perfume ou curso de yoga, você pode falar só para para seus clientes, que será bem sucedido. Mas, quando estiver eleito para uma função pública com a promessa de consertar o país, falar para quem não gosta de perfume ou curso de yoga, só vai irritar o resto do país.
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