Em sua campanha para a presidência, em 2008, Barack Obama criticou o presidente George Bush por ter convocado os americanos a ir às compras como forma de superar as dificuldades financeiras do país, no início da década, ao invés de aproveitar a onda de patriotismo pós 11 de setembro para exigir maiores sacrifícios.
No governo, sua obra mais teimosa foi o Medicaid, o programa de saúde que exige sacrifício do contribuinte para fazer chegar assistência à maioria pobre. Peitava o conceito arraigado de o governo não deve se meter no que seria da estrita competência e do livre arbítrio de cada cidadão.
Na semana passada, anunciou as primeiras providências sérias para restringir a compra e o uso de armas de fogo e munição, incluindo medidas de melhor rastreamento dos compradores, afrontando agora o país inteiro, naquilo que, para o orgulho americano, é direito sagrado como a livre expressão.
Até que ponto esse quixotismo presidencial representa uma tendência por uma maior intervenção do governo americano na vida do cidadão, contra todo o histórico de apreço à liberdade individual daquela América? Em que sentido essa cruzada traduz uma guinada no american way of life, no modelo individualismo e livre arbítrio, para um modo de vida mais solidário?
Se você ler Justiça, de Michael J. Sandel, que condensa o espírito de suas palestras em Harvard, que atrai multidões de jovens e andou bombando na internet, vai achar que sim.
O livro coloca em cheque o modelo americano de livre escolha do indivíduo, desde que não afete os direitos dos outros, num Estado tão mínimo quanto possível.
Arma como livre escolha
Contrapõe o conceito utilitário de maximização da felicidade pela liberdade de escolha ao da responsabilidade social. E defende um novo conceito de liberdade e justiça em que o compromisso com a comunidade e o próximo deve substituir o individualismo, o direito de escolha sem parâmetros e o Estado neutro perante os contratos individuais.
Três exemplos:
1. No passado, o país permitia que os convocados para a guerra pagasse alguém para substituí-lo, dentro do princípio de respeito à liberdade de escolha e aos contratos entre pessoas adultas em que não cabe ao Estado intrometer. O sistema evoluiu para tornar o serviço militar voluntário, mas, como se paga razoavelmente bem, apenas os pobres, latinos e imigrantes, além de mercenários terceirizados, acabam convocados para servir de bucha de canhão no Iraque, no Afeganistão ou nas tantas guerras em que o país se intromete mundo afora.
Tem-se aí, provoca Sandel, duas questões sérias que questionam o sentido de democracia, aquele relacionado a distribuir obrigações e direitos entre todos e tomar decisões de consenso no interesse da maioria:
– se alguns são convocados por coerção, ainda que econômica, como os pobres, os latinos e os imigrantes, não é possível dizer que estão tendo liberdade de escolha como os demais;
– se os filhos da elite econômica ou política acabam dispensados (menos de 2% do Congresso têm filhos no serviço militar), essa elite tem menos remorsos ao defender a entrada do país numa guerra e tende a tomar decisões mais distantes do interesse do maioria, inclusive da parte que vai enfrentar balas mundo afora.
Armas e politicamente correto
2. O arremessador Michael Jordan ganhava em uma partida de basquete (31 milhões de dólares) o que a maioria de seus colegas não recebia em um uma vida. O apresentador de TV David Letterman ganha por ano quase 1.000 vezes o salário de um professor ensino médio (43 mil dólares) e mais de 100 o de um juiz da Suprema Corte. No entendimento médio americano, eles merecem o que ganham por serem donos de sua vida e terem chegado onde chegaram por esforço próprio.
Mas o filósofo constrói um longo raciocínio para provar que eles não são detentores e merecedores do que têm, mas favorecidos, privilegiados e premiados pela sorte de estar numa sociedade que lhes deu as condições para crescer e premia o tipo de talento que detém.
O raciocínio abre caminho para uma maior taxação de fortunas e um discurso de responsabilidade social, na medida em que os bens comuns não devem ser propriedade individual, mas repartidos com a sociedade que os tornou possíveis.
Acaba batendo na defesa das cotas raciais nas universidades – ou na distribuição de casas nos conjuntos habitacionais do governo – e nas obrigações de reparação histórica com escravos e judeus do holocausto. O cidadão não pode dizer que nada tem a ver com o que aconteceu em séculos passados, porque faz parte da sociedade com quem tem compromissos.
3. O casamento entre pessoas do mesmo sexo deve ser referendado pelo Estado, para Sandel, não porque se baseia no princípio da livre escolha entre adultos que a sociedade tem que sancionar. Se assim fosse, a poligamia também deveria ser permitida, porque se trata de decisões de adultos livres. Mas, em defesa do Estado na intromissão do que é a melhor vida em sociedade, o filósofo defende a doutrina de que o Estado deve garantir a vontade das minorias. Como tornar o serviço militar obrigatório, de forma a incorporar a elite, ou implantar as cotas e as reparações como condição de expandir o conceito de responsabilidade social, antes da liberdade individual.
Restringir o uso de armas, como quer Obama, tem tudo a ver, antes, com compromisso social, a responsabilidade para com o outro, o cuidado para que a livre escolha de um não afete o direito do outro de ir e vir. Seja numa escola, num cinema ou num supermercado, sem levar um tiro de um maluco que tem o direito de ter a arma e a munição que quiser.
O que me incomoda um tanto no livro é que ele parece dar a mais competente base teórica para o tal de politicamente incorreto, essa distorção da solidariedade humana que acaba camuflando os problemas sob uma casca de etiqueta. Não parece ser a intenção do filósofo palestrante que virou popstar, mas ilumina muito bem essa pretensão.
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