O cadete Hugo Rafael Chávez Frias tinha 17 anos em 1971 quando visitou o túmulo de seu maior herói, o jogador de beisebol Néstor El Látigo Chávez, e pediu perdão por ter diminuído sua devoção por ele. Sua paixão por heróis nessa época incluía um bisavó rebelde do início do século XX, além de Che Guevara, Fidel Castro e um líder popular da guerra federal de meados do século XIX.
– Sou a reencarnação de Ezequiel Zamora – chegara a dizer à época, a ponto de temer ser morto da mesma maneira, por traição e uma bala na cabeça.
Nesses delírios de grandeza, seria natural que acabasse se sentindo a encarnação de Simon Bolívar, o líder visionário que comandou a independência de seis países do domínio espanhol – Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela – e se tornou uma referência mítica da América espanhola, a ponto de ser cultuado como santo, de cuja morte em território colombiano os venezuelanos jamais se perdoaram.
Entre textos em que comparava o libertador a Alexandre, César e Napoleão, o jovem cadete escreveu em 1974 que “Simon Bolívar deu a luz à Nação”. Em outros, atribuiu a ele o papel de Deus Pai, em que a nação era a Virgem e o exército de que fazia parte o Jesus que iria resgatar a honra da pátria mãe humilhada para continuar a libertação de seu povo.
– Ele (o exército) é seu filho, Venezuela, e reúne o povo da nação em seu peito para instruí-lo e ensiná-lo a amar e defendê-la.
Nesse exército, orientava seus subordinados a começar o dia com o pensamento voltado para frases do libertador. Em 1983, no aniversário de sua morte, fez um discurso revolucionário inspirado em suas lutas que mereceu repreensão de seus superiores. E encenou com amigos um juramento famoso de seu herói, debaixo da mesma árvore antiga (Samán de Guere), onde, segundo a lenda, ele teria descansado:
– Juro pelo Deus de meus pais, juro por minha pátria, juro por minha honra, que minha ama não ficará em paz, nem meu braço em repouso até ver quebradas as cadeias que nos oprimem e oprimem o povo da vontade dos poderosos.
Em algum momento, consciente ou não, percebera que se apropriar de um mito era indispensável a seus propósitos. Como tinham feito anos antes os revolucionários da Nicarágua, com a alma do guerrilheiro Augusto César Sandino, e o mítico Subcomandante Marcos, do México, com a de Emiliano Zapata. Ou o seu líder mais recente, Fidel Castro, com a de José Martí.
De tal modo que, quando em 1994 deixou a prisão onde amargou dois anos pela tentativa de golpe frustrada contra o governo do presidente Carlos Andrés Pérez, já havia incorporado sua nova encarnação. Olhando para o panteão onde descansam os restos do libertador, disse aos jornalistas:
– Bolívar e eu lideramos um golpe de Estado, Bolívar e eu queremos que o país mude.
Quatro anos depois, em 1998, elegeu-se presidente da República em cima de uma campanha em que o menos importante era denunciar o esgotamento do modelo dos presidentes neoliberais que combatia. Antes, propunha retomar o ideário do libertador da América, colocando-se como continuador e herdeiro único de uma luta que começara há 170 anos. No discurso de posse, citando Pablo Neruda,
“É Bolívar, que volta à vida a cada cem anos.
Ele desperta a cada cem anos, quando os
Povos despertam…”,
Ele fez “a mais impressionante performance teológico-política jamais vista na América Latina”, nas palavras do ensaísta e historiador mexicano Enrique Krauze, em O Adorador do Herói , um dos 12 ensaios de seu livro Os Redentores , sobre a construção quase religiosa de figuras míticas da América Latina, de onde foram tiradas as informações deste artigo. “O sermão foi um longo discurso entremeado com citações de Bolívar aplicadas aos dias de hoje, cheio de matizes religiosos e frases grandiloquentes”. “Cháves anunciou (no sentido cristão) sua chegada ao poder como algo maior do que apenas um triunfo eleitoral ou político ou mesmo histórico. Era a parusia, o retorno dos mortos e da nação à vida, a ressureição anunciada pelo apóstolo Pablo Neruda.”
Num malabarismo impressionante, conseguiu transformar os 170 anos entre Bolívar e ele num equívoco, numa traição seguida ao longo dos anos por todos os presidentes que abraçaram o ideário liberal. A Venezuela estava agora cara a cara com o maior milagre, o retorno do Condor, a ressureição, que nada mais é que a revolução social sob o farol luminoso de Bolívar. Para substituir os espanhóis como os vilões que exploravam a América Latina, elegeu os Estados Unidos.
Guardadas as proporções, foi o que Lula fez por aqui, sem literatura, sem herói, sem o embasamento teórico do jovem cadete que lia histórias de heróis nos acampamentos do Exército. E sem a mesma repercussão externa. Lula montou no cavalo da miséria e fez também uma impressionante performance teológico-política para se vender como o único filho legítimo do povo desde Pedro Álvares Cabral, tornando irrelevante tudo o que aconteceu antes dele.
Pouco importa que Chávez tenha elevado o clientelismo a patamares insuperáveis e arruinado o país nos seus 14 anos de reinado, utilizando as armas da democracia para deturpar instituições, eliminar adversários e destruir seu principal patrimônio público, a petroleira PDVSA. E, utilizando dinheiro público para comprar países e expandir sua influência no continente, tenha transformado em piada os propósitos mais nobres de Simón Bolívar.
Independente de qualquer coisa, conseguiu construir uma ideia arrebatadora, bem lastreada na culpa e nos brios de seu povo, e vendê-la como se fosse seu único guardião e senhor. E uma ideia arrebatadora sob domínio de um messiânico leva muito tempo até que se prove equivocada.
Queirós Laranja diz
Bolsominio recalcado. Só pode!