O que a onda covarde dos cancelamentos esconde de contradições e interesses políticos ou econômicos de canceladores e departamentos de marketing das empresas
Millôr Fernandes, jornalista, escritor, dramaturgo, poeta e cartunista ácido cortante como os melhores filósofos, escreveu na peça A História é Uma História, no tempo em que a censura era apenas a oficial do regime militar, que:
— Um dia o primeiro salafrário encontrou o primeiro imbecil e inventou a primeira religião.
É mais ou menos como vejo quem está por trás das máquinas de cancelamento de reputações que, da antiguidade até Millôr Fernandes, não tinha o aparato tecnológico de disseminação disponível hoje.
Em ordem inversa. Um imbecil achando que pode mudar o mundo calando alguém de que não gosta com um clique mobiliza outros imbecis que são encontrados por um político ou um publicitário salafrário.
Juntos, criam um negócio parecido com religião pela alienação e a lavagem cerebral. Lucrativo em votos, em dinheiro e no quanto de dinheiro podem dar os votos. Num business de interesses recíprocos em que não se sabe onde começa o de um e termina o do outro.
Ganhou corpo com as pautas identitárias, um negócio aparentemente idealista de reparação social de injustiças históricas mobilizado por militantes que alavancam o boicote de empresas alvoroçadas com possibilidades de ganho ou perda financeira.
Em nome da diversidade e da correção política por proteção a minorias, a indústria cultural bancada pelos departamentos de marketing das empresas, de Hollywood à Globo, passou a legitimar as ondas de massacres aos comportamentos desviantes segundo a nova ordem politicamente correta.
Passaram elas mesmas a cancelar heróis, histórias, filmes, criar cotas raciais ou sexuais em suas dramaturgias, amenizar a identidade de protagonistas e vilões, chancelar discursos contra preconceitos, falas e comportamentos de personagens em obras de ficção.
(Se você acha muito que o filho do Super Homem tenha virado gay e a Ana Bolena da Netflix seja negra, pense que Sansa Stark, de Games Of Thrones, foi ameaçada de cancelamento — e a produtora pediu desculpas — por ter dito que “o estupro me fez mais forte”.)
Foi daí que surgiram as agências checadoras, em que jornalistas passaram a se dar o papel escabroso de censores, e plataformas dedo-duro como o Sleeping Giants, empenhado em quebrar sites e veículos de comunicação convencendo empresas a retirar patrocínios.
Exemplo mais recente e estrondoso entre nós foi o do massacre ao jogador do vôley do Minas Tênis Clube, Maurício de Souza, que acabou rendendo para todo mundo: os militantes que o puseram em pauta, os departamentos de marketing da Fiat e da Gerdau que atuaram como o salafrário da história, e, por fim, num tiro pela culatra, o próprio jogador.
Leia: Judicialização do com senso explica massacre desproporcional a Maurício
Nesta semana, outros três casos rumorosos confirmaram a dimensão planetária da coisa que afeta interesses políticos e econômicos. Tanto de grandes corporações, quanto de celebridades isoladas ou mesmo anônimos que possam ganhar ou perder com a nova máquina.
Chico inventou o auto-cancelamento, ao decidir não mais cantar a linda Com Açúcar, Com Afeto, escrita para Nara Leão no final dos 60 do século passado. Tudo indica que se rendeu ao risco de perder seguidoras sensíveis à hipótese de gostarem do machismo da letra.
O lendário roqueiro norte-americano Neil Young rompeu com a plataforma Spotify que lhe dá abrangência mundial, preocupado de que possa ser confundido com o direitista Joe Rogan, dono de um podcast de direita acusado de propagar opinião contra vacinas e alguma apologia anti sanitária.
E o mais bem sucedido reality show da TV brasileira, o Big Brother Brasil, viu sua estrondosa repercussão anterior nas redes sociais cair depois que os participantes resolveram cometer o crime de lesa-audiência de evitar conflitos para não serem cancelados.
Como em todo business e a mesma salafrarialidade das empresas que os usam, promovem e patrocinam, temem encurtar a presença na casa que pode torná-lo milionários ou, no mínimo, celebridades de algum ganho por efeito colateral da presença nacionalizada.
Neil Young pode ter sido motivado, como o imbecil da história cooptado pelo salafrário, por uma indignação legítima, e pôs para girar a roda da fortuna.
Seu ultimato à plataforma puxou uma enxurrada de cancelamentos que reduziu em U$ 2 bilhões o valor da empresa, em três dias e levou água para o moinho da Apple Music, que se promoveu absorvendo o bom-mocismo dele.
A Spotify só não se rendeu à sua chantagem, como tem ocorrido, porque sua balança contábil pesou mais que a ideológica ao contabilizar que o direitista lhe dá muito mais dinheiro. O podcast chega a ter até 11 milhões de plays cada e atraem patrocínios recorrentes que não dependem de venda um a um, música a música.
Chico, que tem uma grande vocação para os discursos de injustiça social que costumam ser confundidos com imbecilidade desde que passou a defender Cuba, pode ter querido ser apenas mais bonitinho e sensualzinho do quanto tem sido para as fãs.
Não é um tipo de especulação financeira imediata, mas um tipo de promoção também, que, ao fim e ao cabo, resulta em fidelidade, mais repercussão, mais fãs e mais, claro, carreira lucrativa. Como os almoços, não existe piscadela de olhos azuis grátis.
Como todo negócio ou cata de voto, em que os fins do dinheiro e da manipulação justificam os meios, canceladores em toda a cadeia alimentar desse processo mal se dão conta do quanto suas ações têm/expõem de covardia, intolerância, prepotência, inutilidade e contradição. E eventual tiro no pé.
Nada mais covarde que calar o interlocutor à força pela intolerância com seus erros e a prepotência de julgar a própria mensagem como superior à outra. Sem perceber que a censura em geral amplia a repercussão da coisa censurada e expõe em carne viva suas próprias incongruências.
Ao anunciar que não mais cantaria Com Açúcar, Com Afeto, Chico parece não ter dado conta de que outras dezenas de letras de seu repertório tem traços de machismo, homofobia, objetificação do corpo da mulher. Para ficar só num exemplo, Sem Açúcar, Sem Afeto, sobre a mulher que se compraz de ser tratada de dia como uma flor e de noite como um cavalo.
Assim como as feministas de sua inspiração parecem ignorar o quanto podem estar sendo paternalistas/maternalistas e tuteladoras. Duvidam que uma adulta do século XXI seja capaz de diferenciar uma letra de hoje de outra produzida sob a cultura de 60 anos atrás.
Como freiras de colégio interno dos 1900 ou de convento do século XVIII com index prohibitorum do XV, sugerem o embalo em sua melodia pode ressuscitar comportamentos condenáveis por despertar desejos condenáveis.
Neil Young deve ter pensado como um frequentador de BBB que um militante de direita como Joe Rogan só vem ao mundo para cometer crimes, que seu cancelamento vai acabar com todos os apologistas de direita e que deve substituir as autoridades na função de puni-los.
Mais ainda, que eventuais apologias de sua obra são superiores, menos nocivas e mais do bem do que as dele. Não fosse o rock, por natureza, o fundo musical ideal dos apologistas de sexo livre e uso de drogas pesadas.
Os frequentadores de BBB, como um roqueiro que não consegue compor nada além de três acordes, em geral não se dão conta mesmo de coisa alguma.
Seria muito querer que intuíssem sobre a força e o carisma de personagens contraditórios, maus e bons porque humanos, que atraem mais atenção e engajamento do que os zumbis em que vão se transformando, à espera de cliques modorrentos.
Um grande tiro no pé, como acabou se tornando o caso exemplar de Maurício de Souza, promovido a herói da internet, mais rico e futuro catador de votos depois do massacre.
Como pode ser para a indústria cultural e os departamentos de marketing, a cada dia precisando de novos e mais caros investimentos para repor os personagens e histórias que estão destruindo.
> Publicado no Estado de Minas, em 1/2/2022
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