Nunca me envolvi em acidente de carro sério em dia de 600 mil a 1 milhão de carros nas ruas.
Mas, na última terça-feira dessa quarentena que parecia domingo de ruas vazias, abalroei um fusquinha pela lateral esquerda com estragos significativos para os dois carros.
Pode ser eu que estivesse um tanto desatento, com espírito de domingo, elucubrando sobre meu tema favorito desses dias, a de que a pandemia não vai mudar o homem. Mas estava certo.
Íamos em pistas paralelas. À minha esquerda e alguns metros a frente, ele decidiu entrar à direita sem consultar o retrovisor. Nem se eu tivesse com meus cinco sentidos de dias comuns concentrados, eu evitaria a pancada.
O desastrado, um militar, saiu do carro apalpando um inchaço de dor de dente, admitindo que não estava no seu juízo perfeito, zonzo de dor.
Pediu desculpas efusivas, apresentou seus documentos, passou o número de telefone, se ofereceu para providenciar e compartilhar o BO online com base nas informações que eu enviaria por WhatsApp.
Não tive qualquer indício que desaconselhasse duvidar da sua palavra, ainda mais em se tratando de um homem da lei. Mas só até a tarde, quando liguei com o orçamento do conserto e a conversa era totalmente outra.
— Você sabe que você bateu na minha traseira, né? Eu posso não ter olhado, mas você também não estava atento e não guardou a distância necessária.
E veio com aquela conversa ruim de quem sabe que, perante o juiz, seria a palavra minha contra a dele.
— Olha aqui, chegado. Eu não sou de dar prejuízo a ninguém. Mas o meu carro também estragou. E quem vai pagar?
Não me surpreendi. Sei que esse é um ritual conhecido de todos os acidentes de trânsito, de minha experiência ou de amigos.
Enquanto as tintas estão quentes, constrangido, acuado, ansioso para resolver tudo, o provocador do acidente se coloca sinceramente à disposição para resolver tudo da melhor maneira.
— Se você precisar de um táxi enquanto o seu carro conserta, pode pegar que eu pago — disse certa vez o senhor respeitável que amassou o carro de minha mulher contra uma árvore depois de desrespeitar a placa Pare de um cruzamento.
Mas, passado o susto e a distância, as tintas frias, outros elementos entram na equação para dissuadi-lo a não cumprir seu compromisso: a mulher, um filho, o advogado, o corretor de seguros principalmente, o sargento amigo que fez o BO do militar que empurrei na mais santa inocência.
Como que protegido da constelação familiar e comunitária que pensa da mesma maneira, o agressor ganha coragem para trapacear como se estivesse certo, segundo os preceitos da comunidade.
Parece coisa isolada, mas tem um âmago que me remete a Bruna Surfistinha e à série de três temporadas que devoro com prazer no Globoplay, puxada pela linda e talentosa atriz Maria Bopp.
Me Chama de Bruna trata da ascensão, queda e vitória da garota de classe média paulista que se prostituiu e ganhou fama pontuando a performance de seus clientes no primeiro blog de sucesso da internet brasileira.
Saga de uma pobre menina rica que vai ao fundo do poço, passa pelo mundo cão da prostituição de puteiros e clínicas de luxo que não escondem a miséria de suas meninas miseráveis submetidas à degradação e à exploração de bandidos para sobreviver.
Fora a caricatura do policial da primeira temporada, a série da Fox e produção da brasileira TV Zero é um primor de gente de carne e osso, grandes personagens sedimentados numa ótima carpintaria de cenários, figurinos e diálogos assombrosamente plausíveis.
Ninguém é santo, todos, exploradores e exploradas, quem paga e quem recebe para fazer sexo, têm seu instante de mau caratice para justificar suas escolhas. Pobres ou ricos.
No que se parecem espantosamente conosco e nossa relativização que premiou essa menina com a fama e pagou por seus livros e filmes, sem saber que estávamos nos olhando no espelho.
E deu nessa nossa ética turva, em que tudo é permitido desde que você tenha uma boa explicação.
Bruna, a boa filha Raquel, justifica tudo pelo seu conceito de liberdade e pelo que o dinheiro pode pagar. Todas as meninas convivem sem traumas com seus momentos de trapaça em nome da sobrevivência.
O próprio mercado em que sexo e intimidade são tratados como mercadoria é uma conjunção de gente de todo tipo que precisa ter boas explicações para comprá-la.
Mais surpreendente, que me encanta na série e emoldura o quadro, é a generosidade produto de doce humanidade que perpassa todas as relações ali.
Todas acabam se apoiando apesar dos arranca-rabos e das trapaças. Num mundo cruel em que todos são vítimas, é preciso se agarrar ao outro para a travessia.
Como nós, como meu abalroado, que caiu fora do compromisso cheio de chantagem e argumentos trapaceiros que para ele soavam justos no modo de vida em que sobrevive.
— Não gosto de dar prejuízo a ninguém. Mas você também não estava prestando atenção como devia.
É produto de uma muita coisa complexa, a começar de uma sociedade em que a lei não funciona, não pune e não garante a força dos contratos.
Mas também de um povo jeitoso, o cordial de que tanto já se falou, que espera resolver seus problemas na manha, na capacidade de ganhar tempo, fazer com o que outro se canse ou confesse parte do problema para aliviar sua culpa.
Se me convencesse de que eu também estava errado, se libertaria de seus pecados. Se eu partisse para briga e o agredisse, talvez melhor. Eu teria dado toda a razão que ele esperava para se sentir vítima.
Depois de dois dias, depois de trocas de WhatsApp desgastantes, em que ele tentava a todo custo me arrancar alguma confissão de erro, aceitou me dar um terço do custo do conserto.
— Não, porque eu esteja errado. — Fez questão de frisar. — Se o senhor for na justiça, é bem capaz que tenha que pagar o meu conserto.
Estava oferecendo pagar por favor, não porque estivesse convencido de seu erro. Sem perceber a tremenda contradição em que o dinheiro que assumia o erro era o mesmo que lhe aliviaria a culpa, na falta de melhor justificativa.
Como no caso de Bruna e das tantas meninas que passam o que ela passou, se justificando para sobreviver, sem a sorte dos ambientes refinados. Dinheiro, sobretudo no mercado do sexo, é ótimo para aliviar a culpa.
Por essas, outras ou medos mais fundos, sempre desejei estar errado em situações que me colocam na perspectiva de ter que entrar em discussão sobre culpados num país em que nos falta todo tipo de segurança, da física à jurídica.
Como em especial nas de trânsito, essa referência cristalina de como se pode comportar um brasileiro quando não há testemunha e de como podem ser precários os contratos que dependem apenas da palavra empenhada.
Acho muito muito mais fácil e menos desgastante dar o braço a torcer a tentar convencer o outro de sua culpa. E pagar se for preciso, para reduzir energia e noites insones.
E, por consequência, nunca aceitar dinheiro para aliviar a culpa alheia. Ou o outro aceita o acordo com civilidade ou está dispensado do compromisso.
Estando errado, coloco a perda na minha contabilidade sentimental, calculo o quanto vou economizar de ressentimento e frustração, e pago para dormir em paz.
Como acabei fazendo neste caso. Agradeci, sugeri que ele usasse o dinheiro de sua proposta para consertar o seu, desejei-lhe boa páscoa, mas não lhe dei o benefício de se livrar da culpa.
Posso estar na contramão de uma sociedade de Brunas que se acostumou a aceita dinheiro para justificar suas escolhas erradas. E sei que não vou consertar o mundo.
Mas não quero entrar em acordos que supram a nossa falta de leis e de uma ética construída em torno delas.
Deixe um comentário