Uma nota sobre a estratégia do presidente de pregar Deus para consolidar seu apoio religioso e outra sobre a unanimidade sem questionamento ao humorista genial
Como aqueles prefeitos que inauguravam até torneira, Bolsonaro está prestigiando qualquer evento evangélico importante para ampliar seu apoio neste segmento, como fez neste domingo na comemoração dos 50 anos de apostolado do pastor Márcio Valadão, na Igreja Batista da Lagoinha. Com o perdão do qualquer, neste caso.
É uma jogada esperta a de se consolidar e quem sabe ampliar a votação em nichos já simpáticos à sua candidatura, de forma a impedir a penetração de Lula nele. Mais que isso, contrabalançar eventuais perdas onde o petista avança.
Quando nada, para melhorar a estima. Os evangelhos foram responsáveis por grande parte da recuperação que vem tendo nas pesquisas, como na da FSB/BTG, divulgada nesta segunda-feira, onde tem 32% das intenções contra 41% de Lula.
Avançou 3% no cômputo geral (29% para 32%) contra menos 3% do petista (44% para 41%), redução de 6 pontos em relação à pesquisa anterior do mesmo instituto. Graças em especial à ampliação da distância entre os evangélicos, hoje em 22 pontos de diferença (51% a 29%).
Ganhou também mais 11 pontos em outras faixas que já dominava, como os mais ricos (45% a 24%) e moradores do sul (43% a 32%), e um pouco, de 6 a 9 pontos, naquelas em que ia mal: estudante de nível médio, jovens e assalariados de 2 a 5 mínimos.
Parece ainda estar longe de atrair as faixas que explicam a vantagem geral de Lula: a lavada de 40 pontos no nordeste (61% a 21%) e entre os ganhadores de 1 salário (60% a 20%), de 28 entre os que ganham salário e têm ensino fundamental (52% a 27%). Nordestinos, pobres e analfabetos, enfim.
Mas sugere estar atraindo de volta o seu próprio eleitorado, que bandeava para o petista como alternativa.
Pode ter muito a ver com alguns ares bons da economia, como a redução no preço dos combustíveis, que mexe com tudo na vida. Mas também com a pauta de costumes que muitos analistas tomam como — ou torcem para ser — inócua.
A pregação Deus-pátria-família embandeirada por Bolsonaro e seus aliados mais engajados, como Tarcísio de Freitas, se encaixa com a ideia de opor “o bem ao mal” que Michele Bolsonaro vem pregando nos palcos com o marido, com razoável sucesso.
Parece calar fundo no segmento que cuida da alma de mais de 30% dos brasileiros, 65 milhões. Um contingente do tamanho do nordeste amplamente favorável a esse tipo de pregação, sensível a questões como aborto e casamento gay, com mais potencial de afinidade com tipos como Michele do que com Lula, vinculado por circunstâncias à defesa desses temas.
Ainda não dá para saber o quando o presidente pode recuperar terreno entre os mais pobres, a ser apurado nas próximas pesquisas, a partir do início do pagamento do Auxílio Brasil, neste 9 de agosto. E não há dificuldade que recupere entre os mais ricos, que já domina e são os primeiros a perceber a recuperação da economia.
Mesmo com os manifestos pela Democracia, a serem lidos na quinta-feira 11, que boa parte assinou para dar um recado a ele. Como bem resumiu o influente Horácio Lafer Piva, acionista da Klabin e ex-presidente da Fiesp, ao Estadão: “Lula nos deixa parados, com poucos avanços, mas Bolsonaro nos leva para o abismo”.
Mas não é bobo e vai recuperando onde pode, como na pajelança deste domingo na Lagoinha. Como nas reuniões que começa a fazer com os principais signatários, como fez com os banqueiros nesta segunda. Na sua linha de não descuidar também do deus dos mercados.
A hagiologia de Jô Soares
Obituários figuras públicas sempre foram em geral a favor. Só os de alto nível, cada vez mais raros, avançam por abordar também as falhas e contradições do falecido. Ficou famoso e bem combatido o de Paulo Francis que desancava as indiossincrasias e posições políticas de Carlos Drummond de Andrade.
Mas há tempos eu não via uma hagiologia tão unânime, absolutamente carente de restrições, como a cobertura consagrada à morte de Jô Soares.
Ficaram de fora algumas de suas inconveniências, como a de ter perguntado a uma governadora de Estado — Marta Suplicy — qual era a cor da sua calcinha, suas limitações de entrevistador que muitas vezes abafava o entrevistado e suas carências de escritor.
No afã de fazer quase tudo em entretenimento — atuação, direção, humorismo, jornalismo, artes plásticas e literatura —, escreveu livros que não tinham valor literário ou de humor.
Fez boa pesquisa histórica para contar fatos históricos em tom de sátira, em títulos como O Homem que Matou Getúlio Vargas, mas que resultaram apenas num tipo de piada longa, entre rasa e sem graça, que pudesse ter melhor efeito num show de stand-up.
Sua incipiência autoral ficou muito evidente ao tomar a ousadia de aceitar o convite para substituir as duas páginas de sofisticação intelectual que o quase filósofo Millôr Fernandes preenchia por décadas na Veja, sob a desculpa de fazer humor. E suscitar uma comparação impiedosa.
Suas piadas de feira, em contraposição às pequenas iluminações de um dos nossos gênios literários — cuja antologia Millôr Definitivo produziu um catatau estupendo — provocavam mais constrangimento que humor. Como as que abriam seu talk-show, todas as noites.
Sua graça não estava na qualidade do texto, dosado para ser compreensível em plateias mais populares, mas nas caras e bocas que ampliavam o sentido ou as reações da plateia, quando a piada não funcionava.
Seus textos eram na verdade foram escritos por dois companheiros de décadas — Max Nunes e Haroldo Barbosa — e não à toa que os dois volumes de sua biografia de ótimo título, O Livro de Jô, são de autoria de um ghost-writer, Matinas Suzuki Jr.
Não era um escritor como talvez pretendesse, mas um grande ator humorista de faro fino, de inteligência rara e presença de espírito, que atuou o tempo todo na vida para atrair e promover ideias e pessoas. Com um timing de águia para provocar o efeito desejado no entrevistado ou na plateia, saber o que funciona, saber parar e mudar de galho na hora certa.
Depois de ator, diretor e humorista de sucesso, era impensável que fosse deixar de fazer seus tipos geniais, paixão nacional, no auge do sucesso, no meio da década de 80, quando decidiu partir para o seu talk-show de fim de noite. Mesmo sob o risco de deixar o guarda-chuva poderoso da Globo, no auge do seu monopólio, que não aceitou sua proposta.
Teve a coragem de ir para o SBT, ainda uma rede popularesca meio mundo cão de programas apelativos e novelas mexicanas, num processo de transição para chegar à classe média com jornalismo e humor de melhor nível. E acabou sendo determinante para lhe dar novo perfil.
Ficou por lá até 2000, quando voltou à Globo por mais 16 anos, para consolidar o que foi a bancada mais prestigiada e influente da TV brasileira, mistura bem dosada de humor fino e jornalismo de entretenimento. Só de perguntas convenientes e com suas caras e bocas para enfatizar as piadas não entendidas, mas altamente antenado com as mudanças da sociedade.
Mereceu toda a badalação que teve em vida e a enorme constelação de amigos e celebridades que cativou e o ajudou a fazer sucesso, inclusive onde não era o gênio que se diz, como na literatura. E merece quase toda que tem em morte.
Ter ressalvado seus defeitos não diminuiria em nada seu talento em tantas outras áreas e iluminaria sua humanidade, além de prestar bons serviços ao jornalismo que ele tanto admirava. Nos tempos dos obituários mais severos, a causa da sua morte não passaria encoberta.
E seria certamente compreendido por ele, um quase diplomata, homem de seis línguas e alta cultura, até onde se sabe generoso, atento e disponível com todos quantos passaram por ele. Que foram muitos. Só de entrevistados em 30 anos, quase 20 mil.
>Publicado no Estado de Minas, em /8/2022
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