Como a competência do presidente para eleger os inimigos e posar de anti-sistema, sem ser, pode ensinar que o DNA petista do “nós contra eles” está ultrapassado
Até Daniel Silveira achava que Jair Bolsonaro esperaria o trânsito em julgado de suas penas no STF para dar-lhe o indulto que sacudiu o país. Não devia ter aprendido que o presidente não suporta perder o controle da narrativa.
Em menos de 24 horas, ele conseguiu tornar sem efeito a versão que se estruturava, de que a Suprema Corte dera um basta a um tipo de delinquência política que seu governo apoia, e colocou outra no lugar.
Espalhou um vírus de propagação rápida de que a Corte agiu com arbitrariedade, atropelou o Congresso e agiu mais política que juridicamente para punir o que seria crime de opinião e, como sempre, combater os aliados do governo.
Certo ou errado, legal ou ilegal, importava pouco. Estava sendo Bolsonaro, no que tem feito com muita competência para se manter em evidência e mascarar os problemas de seu governo, desde que começa a tuitar de madrugada, todos os dias, às vezes dentro do closet para não acordar a primeira dama.
Faz com uma intuição que parece método. Escolhe os inimigos certos e dá o troco às narrativas logo depois, durante ou até antes que elas se imponham, a partir de batalhões no WhatsApp que se multiplicam durante o dia. Domina 63% dos debates políticos nas redes contra 24% de Lula, segundo a consultoria Bites.
Esses inimigos certos e prioritários são o Judiciário, a imprensa tradicional e o universo cultural (lembram a crise com Anitta?) que se mistura com o da universidade, que identifica como centros irradiadores do progressismo politicamente correto.
Também por instinto transformado em método, percebe neles alta rejeição pública, que retroalimenta sem dificuldade. Vende os três como cúmplices no desmantelamento de valores tradicionais, da soltura de criminosos ao casamento gay.
Conseguiu a façanha de parecer perseguido por eles e o paroxismo de se projetar como um candidato anti-sistema, embora seja o próprio sistema. De acusar os três de corrupção, financeira ou moral, por exemplo, tendo se associado ao Centrão e desmoralizado os órgãos de combate aos crimes de corrupção.
É um caso de tese universitária que pode ajudar a explicar o fiasco da propaganda lulista, que entrou em crise na última semana com a demissão do marqueteiro Augusto Fonseca, protegido de Franklin Martins, que vinha para salvar o mundo.
Possivelmente pelas razões erradas. Como no caso dos altos preços praticados pela Petrobras, não adianta trocar o presidente se não há vontade política para mudar o método e o conteúdo.
Soube-se que a troca se deu por brigas de poder típicos do partido e quase nada sobre os problemas intrínsecos de conteúdo dos primeiros trabalhos do publicitário, as inserções curtas e estratégicas do poderoso horário nobre da TV aberta.
O mais perto de um diagnóstico a que chegou a cúpula do partido, um tanto atarantada, foi que as peças produzidas “não tinham alma”, sem deixar nem de longe claro o que isso significa.
Desconfio que tenham dito no sentido de não recuperar o passado glorioso das campanhas do jingle chiclete “lula-lá” que arrastava multidões ou o tom belicista de atacar, mesmo para defender, em que os próceres do partido e Lula em especial se sentem mais confortáveis.
Problema é que não parecem ter atinado para como. Como voltar a mobilizar a sociedade com as duas coisas, uma música que pega e um ataque que faça sentido, sem saber o que dizer e como? Com que alma?
Aí é que talvez tenham que olhar para Bolsonaro e suas circunstâncias. Como tomar-lhe a narrativa ou controlá-la antes dele, senão mirando suas redes, sua estratégia, seus inimigos escolhidos e sobretudo o espírito do tempo (Zeitgeist) que o embala.
Em 2012, o petista Patrus Ananias, ex-ministro de Lula que havia sido um prefeito exuberante de Belo Horizonte, no início dos 90, patinava na campanha que viria a perder contra Márcio Lacerda. Como escrevi à época, neste artigo, tinha ficado velho.
Não por ele mesmo, mas pela campanha que repetia os mesmos cacoetes petistas de participação popular e direitos humanos contra o novo discurso de modernidade e eficiência empresarial do adversário, candidato a reeleição. Tentava repetir, como se a vida não tivesse passado, o espírito do tempo de 20 anos atrás.
Sinto que a cúpula petista esteja na mesma encruzilhada e não tenha visto o tempo passar desde a campanha vitoriosa de Lula em 2002, também há 20. Não estaria velho por ideias, mas por não tê-las adaptado ao novo espírito.
E qual era o espírito do tempo, a tal ideia força que nada é capaz de deter quando a hora é chegada, no dizer de Victor Hugo, que o levou nos braços do povo ao Planalto, com direito até a choro do adversário Fernando Henrique Cardoso?
Era a ideia muito bem vendida, mesmo que falsa, de que ele vinha para restaurar a justiça distributiva e a desigualdade provocada por uma elite insensível desde 1500. Ideia e momento e o momento da ideia se encaixavam no operário vindo da pobreza contra a elite de nariz empinado encarnada nos homens brancos do PSDB.
Passados 20 anos, esse mote não tem o menor apelo, mas se impregnou no imaginário da cúpula do partido como aquele mesmo sentimento que deveria embalar os fiéis de Patrus: a saudade de uma experiência tão forte e doce de infância a que nos remetemos diante de novas dificuldades.
Com um condimento perigoso que se cristalizaria como DNA e perpassaria todas as campanhas e ações midiáticas do partido desde então: o “nós contra eles”. Por mais antipático que viesse se tornando e se impregnando, como uma segunda natureza do partido.
Tão mais grave porque vem de longe. De pelo menos 60 anos de guerra cultural, desde a luta contra o colonialismo e pelos direitos civis e o feminismo, contra o colonizador, o homem branco e o patriarcado. O homem de esquerda que apóia Lula apaixonadamente é herdeiro dessa tradição de atacar e desqualificar o opositor como representante de uma dessas três correntes.
Quando Dilma ou Gleisi aparecem na propaganda, como agora, elas não se contentam em falar das conquistas dos governos petistas, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos. Mas vinculá-las à luta das mulheres, numa crítica velada e inconsciente aos dominadores, os “eles”, machos e brancos, possivelmente.
O recalque perpassa todo o discurso de Lula a cada passo, no caso do aborto, do acesso à universidade, do direito à picanha e à reforma trabalhista. Ele não consegue apenas lembrar que deu melhores condições de vida à população como um todo, mas aos pobres, às mulheres, aos negros, contra, implicitamente, uma elite colonialista, patriarcal e branca.
Só que isso está enchendo cada vez mais o saco e soando cada vez mais ridículo.
O fato de o marqueteiro demitido ter concedido em colocar as duas depois de um conjunto de peças razoáveis — não sei se antes ou depois das críticas sofre a falta de “alma” — pode indicar que ele também não tem consciência dessa herança forte. Gleisi, Dilma e Lula não sabem pegar no microfone sem restaurá-la, inconsciente, e mais forte porque inconsciente.
Talvez devessem perceber que os inimigos escolhidos por Bolsonaro não têm uma classe social definida. Atendem a um conjunto de incômodos gerais do que a de nichos segmentados — negros, mulheres, gays — que o lulopetismo abraça e mais acentua o discurso contra a zelite.
Tendo Bolsonaro razão ou não, há quase uma rejeição universal na sociedade brasileira contra um judiciário inoperante e seletivo que solta criminosos facilmente, uma imprensa parcial que o apoia e uma ditadura de comportamento que contamina novelas, filmes e redes sociais.
Nem se discute se se trata de uma impressão real e com fundamento, porque é da natureza dos novos mecanismos de manipulação na comunicação por internet a criação de desejos e ódios coletivos. Em que se criam verdades provisórias.
Em 2018, na campanha que deu vitória ao candidato de extrema direita na Itália, a comunidade de Tirol, ao sul, abandonou suas desavenças seculares por autonomia territorial e se juntou no combate a casamento gay e motoristas de táxi imigrantes que tomavam o emprego.
Matteo Salvini, também chamado “capitão”, vencedor do pleito na onda direitista que varreu o mundo desde o Brexit e a eleição de Trump, pode ter ajudado a criar o ódio, mas não o faria se não houvesse um desejo coletivo imanente.
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No espírito desse novo tempo, interesses difusos coletivos, tanto quanto possível alimentados por desejos ou ódios profundos, juntam pessoas de todas as classes. Bolsonaro pode ter criado os seus, mas não teria sucesso se não houvesse uma predisposição coletiva a respeito.
Quando Bolsonaro fala no direito a posse de armas, ele bate fundo numa angústia de segurança que permeia todas as classes, do mais faminto ao mais rico. Quando reclama que meninos (trans) não devem entrar no mesmo banheiro de meninas, atinge outra angústia que é majoritária na sociedade.
O inimigo é mais simples e está na frente, com uma arma na mão, ou no banheiro ao lado. Não em cima.
Aí entra outro condimento agravante, que é preciso tratar em outro artigo, mais longo: a dificuldade da esquerda desde sempre e transplantada para a afeição a Lula de enxergar a realidade. Ou sua vocação histórica de brigar com ela e com o que a maioria defende.
A pessoa de esquerda que Lula cativa, herdeira de uma tradição romântica pelo mundo ideal que vem desde o século XIX, defende aborto, índios pelados isolados na aldeia, banheiros coletivos, menores delinquentes tratados com psicologia e a ideia de que o marginal com armas à sua frente é uma vítima, não agressor, da sociedade. E que a polícia que o combate, suspeita, mata mais negros que brancos.
De tal forma míope e encarcerada nos seus preconceitos de classe, que se recusa a discutir por que jovens de periferia da mesma região geográfica e nas mesmas condições econômicas do assaltante não caem no crime. Ou porque soldados pretos também matam.
É contra isso tudo que Bolsonaro cavalga. Pode-se acusá-lo de tudo, menos de falta de clareza e de escolher o inimigo. Nenhum outro candidato teve o instinto e a coragem, que transformou em método, de condenar com todas as letras tudo o que Lula encarna nesse sentido.
Não vai ser fácil para o petista e a cúpula do seu partido, o mesmo grupo de amigos estratégicos de crenças iguais que comandaram a campanha vitoriosa de 2002. Teriam que revisar seus conceitos e paradigmas com recursos de psicanálise, para reverter motivações internalizadas.
(Ou então, assumir que são assim mesmo, e “vamos para o pau”.)
Lula sabe muito bem por onde começar, porque é mestre, entre tantas coisas, de eleger inimigos. A Globo foi um importante e por longo tempo, a certa altura. E pode-se deixar com ele a tarefa, desde que ele aprenda também, e rápido, que o inimigo não está necessariamente em cima.
O principal deles, se me permitem uma sugestão óbvia típica de ensinar padre-nosso a vigário, está à frente: Jair Bolsonaro, que ainda está por ser desconstruído. Reeleição é o momento óbvio de mostrar ao eleitorado por que o candidato a ela não merece ser reconduzido.
Não é o melhor dos inimigos numa campanha que deve contemplar também a direita que pode votar nele, mas é o que se tem à mão.
Outro, se ainda me permitem outra sugestão, à guisa de raciocínio, é o Congresso. Ninguém, incluindo Bolsonaro em 2018, perdeu voto por bater em políticos e colocá-los como o bicho-papão do sistema que quer manter seus privilégios. (Deixem com Lula avaliar até onde, porque vai precisar de muitos deles.)
Escolher o inimigo de acordo com o Zeitgeist, sem bater na zelite, objetiva ou inconscientemente, está no topo da lista de providências, antes do mais difícil: superar a dianteira de Bolsonaro nas redes sociais, que o faz dominar a narrativa, apesar dos sabidos esforços do PT de formar quadros para isso.
Só outra boa narrativa pode combater a presidencial e ampliar a militância digital por apoio orgânico. Bolsonaro não chegou ao topo das redes pagando ou aliciando. Mas percebendo a hora com uma boa ideia, a tal imbatível quando a hora é chegada.
> Publicado no Estado de Minas, em 26/4/2022.
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