A neurolinguística tem uma convincente teoria de quatro fases do aprendizado em alguma atividade, da ignorância arrogante à sabedoria inconsciente:
- A primeira, dita Incompetência Ignorante, é aquela em que você não sabe que não sabe. É quando inveja alguém dirigindo, tocando uma música, atuando na novela, fazendo um grande discurso ou escrevendo um belo texto e acha que pode — ou se mete — a fazer o mesmo sem treino. Só dá vexame.
- A segunda, a da Incompetência Consciente, se refere a quando você sabe que não sabe. Dá um jeito de aprender a dirigir, tocar, interpretar, discursar ou escrever, tem consciência de suas limitações e pelo menos evita se expor.
- A terceira, da Competência Consciente, diz respeito a quando você sabe que sabe. É a consciência de que, mesmo sabendo, não quer dizer que não precise estudar mais. Se vai discursar, gasta bom tempo na preparação, decora algumas falas, faz caras no espelho. Se escreve um texto, revê, corta, reescreve.
- A quarta é a Competência Inconsciente, de quando você não sabe que sabe e tudo flui, sem esforço. É a fase da automação em que se é capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo enquanto dirige porque se esqueceu de que está no carro. Pode ser pego num flagrante que fará um bom discurso. Não sofre para fazer um bom texto.
Invejo a fluidez de jornalistas e palestrantes que falam sem ler e sem tropeço, como Boris Casoy ou Barack Obama, e sofro para falar em público ou me expor num vídeo, embora me meta.
Porque ainda não saí da primeira fase. Estou quase na segunda, de consciência proativa de que não sei, mas não salto de uma para outra por um bloqueio brutal. Talvez relacionado a não achar que seja essa minha praia ou que me tenha alguma valia.
Já não tenho qualquer dificuldade para produzir em minutos um texto de qualidade que outra pessoa das primeiras fases levaria dia ou dias. Chego a gastar menos de 40 minutos com um artigo bastante aceitável, pronto para publicação, que antes me custava de quatro a seis horas.
A automação é tal que que me surpreendo quando volto para rever algum post e o percebo melhor do que estimou a memória. Desconfio que me esqueci de alguma coisa, me pergunto se não faltou determinada palavra, e, quando o reabro, vejo palavras e frases de boa qualidade que não me lembrava de ter escrito.
Boris Casoy inventou a opinião no jornalismo televisivo, quando teve carta branca do SBT para falar o que quisesse após cada notícia no TJ Brasil, que criou, dirigiu e apresentou entre o final dos 80 e quase o fim dos 90. Em meio à avalanche de denúncias de corrupção no final do governo Collor, fez famoso o bordão “Isso é uma vergonha”. Perguntado certa vez como conseguia opinar sobre tudo com tanta agilidade e qualidade, respondeu que não sabia. Disse que as frases simplesmente saíam.
Se meu texto não sai do forno melhor do que deveria, pelo menos no que diz respeito a flexões e estruturas gramaticais, é que a fase da sabedoria também tem disso. Que você não se importa de ser julgado por seus erros, porque, até onde lhe interessa, eles não são determinantes para abalar sua reputação.
Digo isso porque venho me perguntando porque o presidente Jair Bolsonaro, como eu com discursos e improvisos em vídeo, não sai da primeira fase de seu aprendizado de relacionamento com a imprensa.
É o caso típico de alguém que não sabe que não sabe como se relacionar com jornalistas, ignora sua ignorância a respeito e ainda assim mete a se expor com estragos conhecidos mundialmente.
Entrevista quebra-queixo
Se pulasse para a segunda fase, da consciência humilde de que é ignorante para lidar com o meio, já teria aprendido a primeira lição de qualquer manual de assessoria de imprensa. Na crise, o melhor é não falar, mas, tendo que, é preciso escolher hora, local, ambiente e veículo.
Informação relevante de governo é para ser dada por nota ou entrevista coletiva de um técnico ou do porta-voz. Calculada, ensaiada e no tempo político certo.
Com isso, aprende-se a segunda, que evitaria muito dos transtornos atuais: entrevista quebra-queixo só deve ser dada quando inevitável. Só quando se está em fuga de um encontro e se é cercado pelo colar de microfones que, como o nome diz, costuma quebrar o queixo ou algum dente do entrevistado.
Não se podendo evitar, terceira lição, fala-se o mínimo e o factual, noticiando o motivo do encontro, antes de uma desculpa para escapar pela saída ou pelo braço do assessor mais próximos.
Bolsonaro tem feito tudo ao contrário, como se ainda estivesse na relação com a imprensa como o bebê na fase anal, aquela em que tem prazer de testar o esfíncter sem consciência do resultado.
Como se vê nas entrevistas postadas nas redes sociais, sobretudo as desastrosas em que acusa as ONGs de colocar fogo na Amazônia e o colunista de O Globo, Merval Pereira, de receber por palestras contratadas pelo Senac.
É ele que se aproxima ao invés de fugir do curralzinho que cerca os jornalistas à porta do Palácio, para falar e não calar, discursar e não responder, passar informação relevante sobre o que não tem certeza, plantar maledicência sem provas, provocar para responder com agressividade, responder com pressa, raiva e impaciência.
No vídeo curto em que reuni 4 minutos de quebra-queixo sobre os dois assuntos, na porta do Palácio, listei pelo menos 15 atitudes suas que não se deve tomar.
Alguém deu-lhe a ideia estúpida de eliminar o porta-voz, o melhor dos que já apareceram por aqui, o general Rego Barros, para transferir-lhe a responsabilidade de procurar ele mesmo — e não evitar — a quebra-queixo na entrada do Palácio.
Há muitos exemplos de que a procura para plantar a provocação do dia, na concepção equivocada de que surte bons efeitos. Apesar de os resultados desastrosos terem demonstrado que não.
Principal fonte das bobagens incendiárias que o presidente cospe na cara da opinião pública, a quebra-queixo nunca serviu para nada além de dar ao jornalista a resposta impensada que precisa para corroborar a manchete que já veio pronta da redação.
— Pergunta ao Paulo Guedes se o presidente o informou de que não aceita a CPMF — é o que manda o editor ao encaminhar o jornalista apressado para a ponta do ataque.
Num vídeo recente no Youtube, uma repórter anda atrás do ministro nos corredores do Congresso, às pressas, depois de se descolar do colar de microfones ferinos, atrás de uma resposta do tipo. Era crucial para ela arrancar dele o que era óbvio para todo mundo e a manchete pré-concebida do dia seguinte:
— Guedes soube pela imprensa que presidente é contra CPMF — teria sido o título, se ele tivesse caído na provocação da repórter.
Em meus 35 anos de assessoria parlamentar e de imprensa em diferentes órgãos públicos, nunca vi autoridade ganhar alguma coisa com esse tipo de entrevista.
É o espaço por excelência da frase fora de contexto, em que os dois lados têm interesses diametralmente opostos. A autoridade quer compreensão para seus erros e feitos, o jornalista quer expandir o erro e a exceção do que não funciona.
Só funciona para a oposição, para quem quer colocar fogo no circo e tem uma grande exceção para explorar sobre o governo. Onde encontra ouvidos receptivos e poucos dispostos a questionamentos.
Tempo e media-training
Fonte e atestado mais visível — ou risível — dos problemas recentes de Bolsonaro, a quebra-queixo desnuda sua dificuldade geral com a imprensa. Que é muito comum em quem sempre esteve do outro lado do balcão, na doce irresponsabilidade de colocar fogo no circo, e, quase sempre, em quem governa pela primeira vez.
Como, até então, não tinham precisado se explicar, não desenvolveram o aprendizado de como funciona a imprensa, sua redação, o trabalho e a cabeça dos jornalistas.
Conheci pouquíssimos deputados que chegavam sabendo as artes básicas de sobrevivência com — ou à — imprensa. Como atender prontamente, ser acessível, evitar privilégios, estabelecer confiança, entender a missão do jornalista, seus prazos, suas crenças, a natureza e o histórico do seu veículo.
Grosso modo, como já ouvi certa vez, você não pode oferecer dinheiro a quem quer opinião e opinião a quem quer dinheiro. É preciso saber identificar os dois.
Por esse tipo de despreparo básico, os novos quase sempre tropeçam nos primeiros contatos, não tanto quanto Bolsonaro. Porque têm a ignorância básica de achar que vão controlar o que vai sair, com ou sem dinheiro, e o profissional que vai publicar. Até porque há uma cadeia de comando dele até a edição final.
Com o tempo, se fazem bem a lição, vão galgando as fases do aprendizado, vão aprendendo a só dar espaço para jornalistas em ambiente controlado, com profissional ou o veículo com o qual já desenvolveu uma relação de cumplicidade para plantar o que interessa ou ser ouvido com dignidade.
Ou tratam de fazer um curso de media-training, onde aprendem noções de relacionamento com a imprensa e técnicas básicas de postura, dicção, síntese, ênfase ou dissimulação convincente.
Se forem bem aplicados, podem em pouco tempo ficar como, digamos, um Aécio Neves, um Fernando Henrique Cardoso ou um Lula, macacos velhos que na fase adulta sempre evitaram quebra-queixo e coletivas, só respondiam o que queriam e escorregavam com aquela convicção dos justos.
Chegaram à fase da sabedoria em que, como Boris Casoy falando ou Obama discursando, não sabem porque sabem.
Jair Bolsonaro não deveria ser um iniciante depois de sete mandatos de deputado, mas se comporta como. Talvez porque — como eu a respeito de falar em público ou gravar vídeo — tenha resistência a aprender. Acha que sabe ou não vê valor em saber.
Se continuar não querendo ou vendo valor nisso, vai continuar quebrando a cara.
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