Ando pensando nas tantas circunstâncias e afinidades históricas que tornam Lula e Jair Bolsonaro tão parecidos. Para em seguida avaliar os que os separa, para além das diferenças ideológicas óbvias.
Os dois nasceram e cresceram como corpos estranhos ao establishment, arrastaram apoio popular apaixonado a ponto de endeusamento e se tornaram bandeiras de um projeto de poder, manipulando ou sendo manipulados por uma massa crítica ideológica.
Impressiona como se parecem no início de seus governos. Ambos reféns de uma guerra cultural que mantiveram como palanque mesmo depois de assumirem a cadeira presidencial, enquanto seus ministros tinham/têm que se haver com o Congresso para fazer o país andar.
Lula passou a maior parte de seus primeiros meses de governo, em 2003, tentando apascentar a militância ansiosa por ocupar espaço na nova ordem. Endossava o discurso contra as elites que os levou até ali, enquanto o chefe da Casa Civil José Dirceu e o ministro da Economia Antônio Palloci cuidavam do que interessa em negociações difíceis com os parlamentares.
Foi-se equilibrando entre as alas desenvolvimentistas e as socialistas que preferiam ênfase em programas sociais como o Bolsa Família, como uma rainha Elizabeth para uso diplomático. Até assumir suas responsabilidades de articulador e fazer aprovar sua draconiana reforma da Previdência, em julho.
Bolsonaro também tem uma reforma da Previdência à espera de seu interesse por articulação. Também se ocupa de apascentar a ala militante que fez da guerra cultural contra o domínio da esquerda o seu meio de vida, enquanto seus homens na Casa Civil e na Economia, Onyx Lorenzoni e Paulo Guedes, tentam tocar o país com o Congresso.
O que os separa claramente é o projeto ideológico e a competência de cada um para implementá-lo. A saber.
Lula e o projeto de esquerda
Lula era um projeto de poder, uma bandeira que uma geração intelectual aprumou e na qual se embrulhou desde que ele começou a calar estádios inteiros nas grandes greves do ABC, no fim dos 70 e início dos 80.
Nos 20 anos que separam o início dessa marcha à sua ascensão à presidência da República, ele incorporou com obediência o papel que lhe coube pelos intelectuais e estrategistas do partido que criaram.
Era a voz, o corpo e a alma de um discurso de ascensão da classe trabalhadora (uma adaptação da expressão “proletariado”) contra uma elite opressora e insensível, responsável segundo esse discurso pelas disparidades históricas do país, desde o descobrimento.
Seu grande amigo e seu melhor e mais lúcido assessor de imprensa, Ricardo Kotcho, o viu exercer esse papel em plenitude nas horas finais em que negociava sua rendição, na noite em que se preparava para ser preso pela Polícia Federal da Lava Jato, em abril de 2018.
Como lembro no artigo Showmício de Lula poder ser último grande ato das esquerdas, ele ouvia um a um, se reunia com diferentes grupos, para afinar um consenso que satisfizesse todas as facções do partido em torno do discurso que deveria fazer de despedida, em tom de réquiem.
Os primeiros anos no poder, a que chegaram todos puxados ou empurrados por sua figura mítica, depois de três derrotas que só fortaleceram seu ânimo e suas afinidades, foram de cumprimento redondo do riscado.
Ele continuava cumprindo seu papel enquanto o principal mentor da guerra cultural que o levou, os levaram ao poder, José Dirceu, comandava o governo. Como a rainha inglesa, discursa bem, andava pelo país, posava com as autoridades e usava seu enorme poder de negociação quando era requerido e/ou esgotados os limites de José Dirceu.
Aprovou — ou aprovaram — o que quis, inclusive a primeira grande e draconiana reforma da Previdência, com uma competência enorme para manter a chama do discurso que embasou o projeto por 20 anos mesmo que o contradissesse quando preciso.
Até o escândalo do Mensalão, três anos depois, uma obra também sua com José Dirceu, quando o projeto desandou. Ele tomou também o lugar que era de Dirceu, virou mentor de si mesmo e de seu próprio projeto de poder.
Saiu da lama, elegeu quem quis, mas encaminhou seu governo e seu projeto para o fim, tão dramático quanto pode ser o gran finale de uma causa que acaba com a prisão de seu principal líder, mentor e alavanca.
Bolsonaro e o projeto de direita
Quase outros 20 anos depois de sua ascensão, nasce, cresce e aparece Jair Bolsonaro.
O deputado obscuro apesar de quatro mandatos, capitão do Exército, tem com ele grandes afinidades históricas: o estranho ao estamento capaz de calar as massas e servir como um projeto e uma bandeira com sinal ideológico invertido.
No lugar de José Dirceu e dos primeiros intelectuais orgânicos que acreditaram nessa bandeira desde a primeira hora, o filósofo Olavo de Carvalho e o clã presidencial. No lugar da luta de classes e de um projeto socialista contra as desigualdades, a inclusão de todas as classes num projeto liberal de equilíbrio dos interesses individuais.
Sai o que se entende por esquerda com sua defesa do estatismo, do controle coletivo sobre o interesse individual e a defesa das minorias. Entra o que se entende por direita, no sentido de defesa da liberdade individual contra a opressão do estamento estatal, da vontade da maioria sobre a de grupos.
Olavo de Carvalho é um teórico competente de um projeto de 20 anos para tentar no Brasil um regime liberal, na linha inversa do que Lula, José Dirceu e o PT implantaram nos 20 anos que lhe couberam na história de lutas até a Presidência.
Ele fez o primeiro rombo na chamada hegemonia intelectual de esquerda, ao captar bem o processo de tomada de poder informal por ela no universo intelectual: universidade, imprensa, indústria editorial.
Fez isso nos anos 90, quando o processo iniciado nos 60 começava a dar seus resultados e lhe permitiu profetizar que a esquerda cresceria para tomar o poder formal no país, quando toda opinião publicada vaticinava o contrário. Que ela desabaria no mundo após a queda do Muro de Berlim, em 1989, marco do colapso da experiência comuno-socialista.
Com os cursos online que toca desde 2009 a partir de Richmond, na Virgínia, ele vem formando uma geração de crentes e propagadores de sua ideologia, convencido de resultados em duas décadas.
Retrocedendo-se até a última campanha presidencial, é possível perceber o quanto ele influenciou o discurso bolsonarista e como seu principal seguidor, o candidato Jair Bolsonaro, se saiu, como Lula, um aluno obediente e disciplinado para servir a esse projeto de poder, a essa bandeira, a essa alavanca.
Condições políticas históricas
Na comparação, porém, Lula estava alguns quilômetros à frente e na situação em que Bolsonaro se encontra. Por características pessoais, tempo de estrada, circunstâncias históricas e apoios conjunturais.
Lula já era escolado em negociação, depois de mais de dez anos de sindicato, quando encantava estádios em silêncio e começava a atrair o interesse das lideranças de esquerda, políticas e intelectuais.
Sua ascensão se embalava no berço do processo de tomada de poder pela luta pacífica nos meios culturais que, conforme o olhar de Olavo de Carvalho, faz todo sentido hoje.
Derrotada na luta pelas armas no final dos 60 e início dos 70, ela iria achar seu caminho na guerrilha cultural quando cruzou com Lula operando sozinho contra a ditadura nas greves subvertedoras do ABC.
Viram nele o boneco de ventríloquo perfeito para sua causa na parte da sociedade que seu discurso classe média não atingia. Até que ponto ele é quem fez de boneco de ventrículo quem achava que o manipulava na nomenclatura sindical e partidária, nos 30 anos seguintes, é outra história.
O problema é que Bolsonaro, apesar de seus esforços, não parece à altura do papel que esse pedaço da história lhe reservou.
Não que lhe falte capacidade articulatória e faro para perceber a oportunidade histórica que lhe caiu ou fez cair no colo.
Primeiro, porque não se passa quatro mandatos impunemente na grande universidade da malandragem chamada Congresso Nacional, sem aprender a tirar a meia sem descalçar o sapato. No artigo Tentando entender sem preconceito o raciocínio de Bolsonaro, eu mostro como.
Segundo, que soube perceber e propagar como ninguém a pegada olaviana de fim dos tempos para o anacronismo do projeto da esquerda. E incorporou nele, como Lula a seu tempo, a oposição a tudo isso que está aí.
O problema é que não parece haver uma madura condição histórica e nenhum consenso de sociedade contra algo grande, como havia no fim da ditadura militar, capaz de produzir uma bandeira simples como disparidade de renda e opressão das elites.
Sendo tudo tão difuso e de difícil encapsular numa mensagem de comunicação fácil, o capitão esforçado não consegue apoio significativo, obcecado como foi o da nomenclatura que o acompanhou por 30 anos, com poucas defecções.
Não tem apoio nem no andar onde alocou seus principais aliados de uma vida, os amigos da caserna, que enxergam o guru de seu projeto de poder como um exotismo. Ideia que os ataques e os palavrões de Olavo de Carvalho, apesar de seu arsenal teórico, só fazem reforçar.
Tem que se haver com o apoio restrito de sua família e dos alunos de Olavo nas redes sociais, uma malta furibunda como foi o PT para Lula uma vida, mas com influência em queda livre dentro do palácio.
Enquanto Lula teve competência para trazer o PT para dentro do governo e implantar a sua revolução pacífica no aparelhamento geral dos Ministérios, Bolsonaro tem que a cada dia afastá-los mais um pouco, para não melindrar os amigos e aliados da ordem em que nasceu e cresceu.
Porque também tem disso. Lula vinha de uma classe e de teses bonitinhas para o discurso de esquerda, a que não precisava renegar para abraçar outra ordem. Foram-se reciprocamente fiéis pelas décadas a seguir.
Bolsonaro vem de uma classe, os militares, e de teses conservadoras de ainda alta rejeição, por condições históricas e até pelo caldo cultural que o discurso de esquerda produziu. Difíceis de renegar e muito menos de serem abraçadas por seus aliados circunstanciais.
Daí se entende a bronca de Olavo de Carvalho com os militares (ver o vídeo abaixo). É possível que, na cabeça dele, eles são os únicos que não deveriam capitular. Deveriam ser os primeiros a dar suporte ao projeto ideológico que o colega de farda abraçou. E não conspirar contra seus defensores nas redes sociais.
Particularmente, acho que o país nunca teve condições tão oportunas de virar a trava do pensamento de esquerda que fez estragos na educação, na política e na economia, e caminhar para um projeto liberal de libertação do indivíduo e das forças produtivas da dependência do Estado.
Mas, igualmente, acho que é muito para o alcance e as condições dadas de Jair Bolsonaro.
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