Carminha, a protagonista de Avenida Brasil, não tem um propósito que faça sentido.
Dá dó ver uma grande atriz como Adriana Esteves tentar dar coerência, com as todas inflexões possíveis, a uma desmiolada que alterna momentos de ternura e crueldade a planos mirabolantes e inverossímeis, em diálogos insossos e duelos ridículos, pretensamente trágicos.
Provocam mais riso involuntário que choro — como da vez que ameaçou enterrar viva sua antagonista, Nina, outra que Débora Falabella sofre para dar alguma lógica.
O autor João Emanuel Carneiro dá a cada uma delas um passado trágico e acha que isso justifica todas as suas incoerências.
Carminha tinha tudo para ser uma mulher desesperada, no sentido que lhe deu a famosa série americana, de mulheres carregadas de grandeza e miséria, mas é apenas patética.
Sou do tempo em que os personagens das novelas da Globo tinham propósito, um sentido de vida, uma coerência interna e se mantinham assim ao longo dos 160 a 180 capítulos diários de uma novela.
Sou do tempo de O Casarão.
Nele, o jovem artista plástico João Maciel (Gracindo Júnior) e a jovem filha de aristocratas do café, na São Paulo dos anos 20, Carolina (Sandra Barsoti), se apaixonam perdidamente.
Mas ela é obrigada a se casar com o jovem herdeiro Atílio (Dênis Carvalho), depois que a família descobre, horrorizada, e joga no rio a escultura em que ele a reproduziu, nua.
Enquanto ela mofa num casamento de conveniência num casarão que vai se desfigurando com o tempo, o artista vai para o mundo experimentar mulheres diversas e relacionamentos frustrados.
Até se reencontrarem 40 anos depois, após a morte de Atílio (agora Mário Lago), numa das mais belas cenas da televisão.
O velho João Maciel (agora Paulo Gracindo) já está desistindo de esperá-la, numa das mesas da centenária Confeitaria Colombo, no centro do Rio. Pede a conta, amargurado, para ir embora.
Mas Carolina (agora Yara Cortes), no frescor de uma terceira idade liberta de 50 anos de convivência frustrada, assoma na entrada e entra risonha como uma adolescente.
— Me desculpe, eu atrasei – ela pede, recheada de doçura, enquanto se assenta.
— Não tem importância. – ele devolve, enquanto chama o garçom e pede uma música.
Aos primeiros acordes do piano, ela pergunta:
— Te fiz esperar muito?
Ele a olha com a ternura reprimida de quase meio-século e responde:
— Quarenta anos.
Da vitrola, sai a voz afiada de Elis Regina na melhor interpretação de Fascinação, um poema melodramático de juras de amor exaltadas que fizeram a cabeça dos amantes trágicos do passado:
“Os sonhos mais lindos, sonhei.
De quimeras mil, um castelo ergui…”
Ou como o Odorico Paraguassu de O Bem Amado, em sua obsessão por produzir um morto para seu cemitério, ou o Zeca Diabo em sua inocência para se regenerar, até os dois se encontrarem no último capítulo, ao fim de seus fracassos, numa outra cena clássica da TV.
Ou como a ex-presidiária Júlia, de Dancing Days, tentando se readaptar na vida, ou ainda Roque Santeiro, aquele herói que foi sem nunca ter sido, que precisava ser escondido pela cúpula política da cidade para não desmoronar o mito e o império de falcatruas que se construiu em torno dele.
Eram tempos em que o autor — como o Lauro César Muniz de O Casarão ou o Dias Gomes de O Bem Amado ou Gilberto Braga de Dancing Days — tinha tempo e pretensões literárias. E o diretor, como Daniel Filho, vontade de fazer história.
O telespectador que perdera algum capítulo perguntava a alguém do lado o que havia acontecido. Descobria por onde o personagem principal andava, recuperava o fim da meada e podia continuar no sofá, torcendo pelo protagonista que ia, a cada capítulo, sedimentando a sua personalidade e seu projeto de vida.
Fico pensando se isso não é ranhetice de gente velha. Que as novelas são como sempre foram e eu é que mudei. A maturidade e um eventual refinamento do gosto possa estar me fazendo perceber agora o que eu não notava nas novelas do passado. Mas, não.
As novelas de hoje, com sua maquinaria industrial, escritas por uma meia dúzia de autores apressados e dirigidas por outra meia-dúzia de diretores sem pretensões autorais, só mantiveram -—ou aprimoraram — seu acabamento estético.
Iluminação, cenários e figurinos se sofisticaram. No que importa, a força intrínseca de seus personagens, roteiros consistentes e diálogos fortes, pioraram, sim.
Volta e meia uma reportagem de Veja, metida a sociológica, se mete a ver o caráter do país nas maldades de Carminha ou na inocência algo idiota de Tufão. Mas se há algo em que o país pode se espelhar nas novelas é que, como elas, ele piorou. Sim, piorou muito.
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