Percebo em três eventos relevantes recentes sinais de que a esquerda brasileira tenta autocrítica diante do fracasso de seu projeto político-econômico:
- a pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, que tentou entender porque o eleitor da periferia de São Paulo votou em João Doria,
- o lançamento há dias de Os Caminhos da Esquerda, de Ruy Fausto, e
- o curso de pós-graduação do Instituto Berthier, A Esquerda no Século XXI, coordenado pelo deputado Pedro Uczai (PT-SC), a ser aberto no próximo 4 de agosto em Bertioga com as maiores estrelas do petismo.
E me atenho ao segundo que provocou na semana passada dois grandes artigos na Folha de S. Paulo, valiosos para se entender as diferenças dos governos FHC e Lula e em que medida essa autocrítica pode ser difícil.
Porque ela começa da dificuldade da esquerda de fazer uma avaliação isenta do governo que tentou estabelecer as bases da racionalidade econômica que ela viria a negar e seus governos posteriores viriam a destruir. Entendê-lo é um bom passo para começar a entender seus equívocos.
A polêmica começou numa provocação de Marcelo Coelho, editorialista de tom elegante, descomplicado e educado para tocar em caixas de marimbondo, sobre a diferente avaliação pública dos dois ex-presidentes apesar de terem tido raízes e propósitos semelhantes.
Ele pergunta, mais ou menos assim: se FHC e Lula foram governos sociais democratas que expandiram os gastos tributários e os investimentos sociais, por que o primeiro foi então carimbado como de direita e o segundo de esquerda?
A resposta que o próprio esboça e o físico e doutor em Economia Samuel Pêssoa vai completar é que Fernando Henrique Cardoso pagou alto preço por não ser populista e compartilhar com a sociedade as dificuldades e limites do Estado.
“Essa franqueza deve ter cobrado um preço de popularidade, especialmente num país em que é tão forte a atuação de uma esquerda populista, sempre disposta a demonizar plataformas mais centristas quando isso lhe convém.”
Lula expandiu o que ele chama de patologias da esquerda, ao reviver o intervencionismo, clara herança varguista de que FHC tentava se livrar, e “tratar o Orçamento como fonte ilimitada de recursos, atitude que produziu um desequilíbrio profundo nas contas públicas.”
Marcelo Coelho tenta explicar a má fama de FHC em sua prioridade a números —privatização e descomplicação do ambiente de negócios para libertar as forças produtivas e incorporar mais pessoas ao consumo — em oposição ao que chama de “valores” evocados por Lula. A “redenção do trabalhador” seria um desses “valores” de mais fácil comunicação à sociedade do que falar em criar condições para quem “é competitivo nas novas condições de produção”.
“Fernando Henrique poderia ter dado o dobro do que Lula deu, mas os beneficiários de seus programas não se reconheceriam em alguém que se diz, em primeiro lugar, representante de quem “é competitivo nas novas condições de produção”. Competitividade e modernização conflitam, em alguma medida, com a extensão dos direitos trabalhistas e o atendimento a demandas de sindicatos.”
Artigo aqui: Debate sobre esquerda e direita não se resolve em cifras
Samuel, também pesquisador da FGV, acha, entretanto, que é questão de fazer contas.
Dentro das dificuldades encontradas por FHC, Lula não faria melhor, segundo ele. O petista foi bem enquanto transitou num cenário favorável de contabilidade em dia e alto preço das commodities, no início de seu governo, mas patinou quando a crise chegou:
“A diferença relevante ocorreu nos momentos de dificuldade. Fernando Henrique Cardoso reconheceu os erros e os limites da gestão pública e optou pelo ajuste. Lula e o petismo, quando da crise externa, optaram pelo populismo e pela expansão dos gastos, e a grave crise econômica que atravessamos decorre dessa escolha.”
Samuel Pessoa localiza a gênese da crise de autocrítica quando a esquerda lidou mal com frustração de suas altas expectativas no ponto em que percebeu que seu governo não podia tudo e se recusava a olhar para trás com honestidade:
“O otimismo se justificava pela interpretação de que o governo (ou o regime) anterior era incompetente e pela noção, comum na América Latina e no Brasil, de que a solução da maior parte dos problemas depende de vontade política. Essa reavaliação, no entanto, demanda elevada honestidade intelectual e, muitas vezes, é emocionalmente custosa. Precisamos nos desapegar de nossas crenças e visões de mundo e ter abertura para repensar. A esquerda tradicional não se mostra muito afeita a tais esforços. Insistir na cantilena que associa o governo FHC ao neoliberalismo impõe custos muito menores.”
Daí a armadilha em que caiu.
“Como demonizou a administração de Fernando Henrique e não consegue ressignificar esse período, não tem opção senão tentar construir novos modelos. A experiência, entretanto, tem demonstrado que esses novos modelos são irrealizáveis e, a médio prazo, resultam, do ponto de vista do desenvolvimento social, no contrário de seu intento. Vimos isso com Dilma Rousseff (PT), com Cristina Kirchner e com o chavismo. (…) Essa dificuldade de ressignificação é muito bem documentada em inúmeros intelectuais e artistas que não conseguem se desapegar de seus heróis e mitos de juventude, como Fidel Castro e a ditadura cubana, e no surpreendente apoio ao chavismo por parte expressiva da dita esquerda brasileira.”
Num resumo dessa infantilização, resume:
— Os jovens dos anos 1960 são os idosos da segunda década do século 21 sequestrados por um patético complexo de Peter Pan.
>>> Artigo aqui: Esquerda precisa se desapegar de crenças e fazer crítica honesta do governo FHC
Poder da aliança
O principal a aprender sobre poder na estupenda Games ou Thrones, que abriu sua sétima temporada no domingo, é que, no mundo mau da disputa política, as alianças firmadas na lealdade são o único valor que pode dar segurança a quem caminha para a conquista.
Mas só até o dia em que, para sobreviver, é preciso eliminar também o aliado. Aí, vale tudo. Como se pode aprender com Michel Temer hoje, ou você o compra ou o elimina.
Fabiano diz
Excelente artigo!
Concordo completamente. A história vai colocar cada um destes atores em seu lugar. FHC não tem o reconhecimento que merece.
thiago diz
Concordo. Essa esquerda de hoje é apenas infantil.
sérgio diz
Ambos farinha do mesmo saco. Um preparou o caminho para o outro. Aí está o resultado com o país na pior crise da sua história.