Quando aquarelas produzidas por Adolf Hitler foram exibidas pela primeira vez, num museu em Viena, nos anos 80, pensei em Oscar Niemeyer. Não pelas formas tradicionais e o tom convencional do jovem de 20 e poucos anos que reproduzia cartões postais em busca de uma vaga na academia de artes. Mas pelo tamanho descomunal dos prédios em relação às pessoas. Como em Oscar Niemeyer, estruturas imensas, algo faraônicas, de amplos espaços vagos, que tornam quase irrelevante a presença humana.
Quando visitei pela primeira e última vez sua última grande obra, a Cidade Administrativa Tancredo Neves, voltei a me lembrar delas e dele e de sua principal criação, Brasília. A mesma onipotência, a solidão de poucas e grandes estruturas equidistantes do homem, separadas por lagos, jardins e amplos espaços vazios, inacessível ou custosas para pessoas que andam a pé.
Desde sempre me incomodou a estranha contradição entre o artista moderno, poeta de formas e autor da mais influente arquitetura do pós-guerra, e o espírito totalitário de sua obra, que enclausura o poder numa torre distante dos comuns. Ou mais: entre o artista assumidamente comunista, e por isso apóstolo do igualitarismo, e o idealizador de espaços que separam claramente o homem do poder.
Ou pensando melhor, hoje: talvez não haja contradição alguma. É próprio de espíritos como o dele acreditar em sistemas totalitários como única condição de impor a igualdade. Mesmo a custo de criar uma casta equidistante em prédios mastodônticos, mesmo ao preço de mandar prender os que pensam diferente. Ou de, em benefício da beleza, produzir prédios desconfortáveis e desfuncionais.
(Fico imaginando o sufoco que deve ser, para quem mora naquele belo prédio de marquises onduladas da Praça da Liberdade, encontrar móveis adequados para suas paredes sem canto. O jornalista Cláudio Humberto, sofrido secretário de Imprensa nos anos que passou no Alvorada durante o governo Collor, lamentava que Niemeyer não tivesse aprendido a desenhar escadas.)
O que de forma alguma reduz a importância de sua obra.
Todas as artes, de Garcia Marquez a Nelson Rodrigues, de Erza Pound a Chico Buarque, estão cheias desses gênios de obras sublimes que defendem um tipo de igualdade imposta de cima para baixo, mesmo com o sacrifício da liberdade.
Ele teve como nenhum outro o tirocínio para explorar as impensáveis possibilidades de curvar o concreto à vontade do arquiteto, assumindo o risco do desconforto. Pintou prédios como quem faz poesia, plantou colunas como flor ou levitou blocos como discos voadores. E influenciou toda a arquitetura a partir de sua prancheta.
Manteve até o fim suas crenças, mesmo que superadas pelo tempo e pelas circunstâncias. Como, mal comparando, um jovem pintor de aquarelas que ainda não sabe o que quer do mundo. Se elas lhe permitiram continuar pensando e fazendo poeticamente sua obra, tudo bem.
João Batista C. Filho diz
Espetacular o seu texto Ramiro, parabéns pela reflexão pois andando por Brasília, ou mesmo visitando a Cidade Administrativa do nosso Estado, sente-se esse distanciamento, que é paradoxal, e coloca a obra de Niemeyr nesse escanteio de Povo x Poder. Que as Aquarelas nos permitam! abç.