Quando Rubem Fonseca já era o único escritor brasileiro que aliou respeito crítico e altas vendas, um crítico amigo o chamou de escritor de escritores.
Hoje, há um consenso entre todos depois dele que influenciou tudo o que se escreveu de literatura no Brasil desde então, de forma consciente ou não.
Para mim, como para os de minha época, o marco zero foi o estupor provocado por Feliz Ano Novo, liberado no final dos anos 70 pela censura da ditadura que o acabou projetando.
Foi um soco no estômago aquela carga de violência, ódio, cinismo e desesperança evisceradas numa narrativa sem piedade. Tão absurdamente crível que era impossível pensar que houvesse outra forma de narrar aquilo.
No conto que dá título ao livro, o assaltante narrador conta a festa de reveillon da zona sul que invadiu com seus comparsas para se divertir e matar alguns granfinos.
A certa altura, ele duvida que sua carabina faça mesmo um rombo no peito da vítima. Para testar, manda um dos convidados se posicionar e dá o tirambaço que o projeta de peito arrebentado contra a parede.
Não gosta da decantada eficiência da arma, como comenta com o amigo no mesmo tom relatorial de frases curtas e cruas com que vai contando outros assaltos e crimes sem um vestígio de conflito.
Na outra ponta da pirâmide, em Passeios Noturnos, um executivo extravasa seu tédio atropelando mulheres pela noite. Do mesmo jeito, em parágrafos curtos e letais, num cinismo doente sem consciência.
Tinha alta carga de ódio de classe, que o obscurantismo de hoje, na sua leitura apressada, jogaria no lixo.
O Cobrador, publicado logo em seguida, é do sujeito que sai matando para cobrar a dívida que entende lhe ser devida pela sociedade:
“Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes.”
Mas os mais avisados veriam ali alta literatura, de anti-heróis possíveis na sociedade degradada em que se transformara o Brasil depois da urbanização selvagem dos anos 60 e 70.
Como disse Sérgio Rodrigues neste texto estupendo da Folha de S. Paulo, foi daqueles raros que atingiu o máximo a que um escritor pode aspirar: a de, tendo traduzido sua época melhor do que ninguém, confundir-se com sua ela.
É o caso de Machado de Assis e o Brasil da segunda metade do século XIX, que não pode ser compreendido sem ele.
Relembra Heloísa Starling para se perguntar até onde, como em Machado, o Brasil selvagem pós urbanização dos anos 50/60 não foi uma criação de Rubem Fonseca.
Como um Graciliano Ramos, outro raro que acrescento, que mimetizou o nordeste miserável do retirante tal e qual o conhecemos. Ou um Jorge Amado, um pouco menor, que virou sinônimo do Brasil dos coronéis.
Fonseca traduziu, ou recriou como ninguém mais, o submundo do Rio de Janeiro com seus miseráveis de todo escopo social: prostitutas, traficantes, policiais e contraventores se cruzando com uma elite deslumbrada que surge quase como uma franja marginal da sociedade.
O ápice, logo em seguida, foi o magistral A Grande Arte, em que advogado cínico Mandrake, apreciador de charutos e mulheres, expõe o DNA fonsequiano na investigação de um esfaqueador que deixa prostituas grafadas na testa com a letra P.
Foi inevitável para os críticos relacionar a grande arte cutelar do matador, aludida no título, à arte maior de Fonseca, àquela altura cortando e expondo o nervo cru da realidade com seu bisturi narrativo.
Foi o segundo de 12 romances, depois de O Caso Morel, de 1973, e de cinco das 19 coletâneas de contos, o terreno em se sentia de fato confortável para esgrimir sua arte.
Seu impacto não me atingia pelo discurso social, que não tinha mais relevância que seu estilo à época. Mas pela outra forma, a primeira e originalíssima, de se fazer romance policial de inspiração americana em cor absolutamente local.
Sim, seus policiais e advogados de porta de cadeia eram os detetives possíveis daquele país miserável, não os bonitões da literatura de mistério de Agatha Christie e afins ou do cinema em que James Bond era o paradigma.
A literatura policial de mistério pós Aghata e Arthur Conan Doyle perdia terreno para a dimensão psicológica dos personagens. Mas em Fonseca, como escreve lindamente Sérgio Rodrigues, essa dimensão é “achatada pela pressão dos baixos instintos e do meio social injusto”.
Contribuiu muito a experiência de comissário de polícia do bairro São Cristóvão, onde entrou por concurso em 1950. Seus grandes anti-heróis sãos os policiais à brasileira, justos e honestos na medida das nossas circunstâncias.
A Grande Arte, uma releitura do romance noir de detetives sombrios e sedutores, era assim também a vertente do único herói de literatura possível da nossa degradação urbana.
Não que Rubens fizesse crítica social por objetivos políticos. Ou era tão genial que o dissimulava. Seu terreno era o da literatura mesmo, da especulação, sempre cínica a seu jeito, do papel dela e dos escritores.
Uma das razões seguras pelas quais é amado pelos seus pares é que envolve seus personagens escritores no conflito de cometer crimes. Seus comissários de polícia são narradores de pretensões literárias e seus escritores meio candidatos a policiais ou assassinos.
Como se a escrita fosse também um tipo de crime consciente, como os charutos e as prostitutas, a que só investem os homens de requintada perversidade.
Bufo & Spallanzani, sobre o assassinato de uma granfina que pode ter sido cometido pelo seu amante escritor, me causou reviravoltas na cama pelo jogo de tempos e as tantas foram as especulações ferinas sobre o ofício.
Morel é sobre um artista que envolve um escritor na sua história, que envolve um crime. Noutro grande conto, de que não me lembro o nome, o escritor acompanha um assassino na preparação de um assassinato.
Nunca me inspirou o seu texto de frases curtas, a estilo metralhadora, que virou meio dogma para muitos imitadores, embora não fosse só o que ele fazia.
Como demonstrou nos tantos contos e romances em que incorporava a respiração de seus narradores e seu alter egos. A escrita de A Grande Arte, Agosto e, mais ainda, Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos, beira o tradicional.
E tinha poesia também. São românticos o lindo A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro ou outro, de que também não lembro o nome, em que um delegado de polícia ajuda uns meninos a recuperar uma pipa.
Embora também preocupado com o tamanho das frases, sempre namorei o estilo langoroso de bolero de Nelson Ned em Garcia Marquez, como conto em Minhas Influências Quem imitei e quem inspirou minha identidade literária.
O impacto mais notório e permanente de Rubem Fonseca no que escrevo é essa desesperança, que começa pelo país e tenta picos universais na desilusão com a raça humana. Pelo menos para fins literários, porque era sabidamente um boa praça, feliz e resolvido.
Minha mais escrachada imitação/homenagem a ele foi no capítulo de desesperança de mesmo nome do conto famoso, Passeios Noturnos, em O Camaleão no Abismo, de 1986.
A menos óbvia e nem por isso menos perceptível foi a seu outro grande romance, Agosto, de 1990, em que mistura realidade e ficção para iluminar, melhor que historiadores, as motivações do atentado a Carlos Lacerda que deu na tragédia do suicídio de Getúlio Vargas.
A arma que matou um figurão da sociedade pode ser a mesma usada no crime da rua Toneleiros. O que leva o inspetor Mattos a uma trama de escândalos que ronda o Palácio do Catete.
Meu romance O Presidente Vai Morrer, de 2010, bebeu todo dessa fonte, que romanceia o drama de Tancredo Neves, internado e morto sem tomar posse depois de ter costurado um processo de transição delicado da ditadura para a democracia.
O foca desesperado pelo furo da sua vida investiga o desaparecimento de uma fotógrafa em meio ao comício das Diretas e descobre a doença que vai matá-lo antes de cumprir sua missão. Àquela altura, porém, dadas as circunstâncias, não interessava a nenhum editor sério publicá-lo.
Também como os critores de nossa geração, gostamos de falar mal dos defeitos de Rubem Fonseca depois de velho, até como, no meu caso, uma reflexão preventiva sobre o risco da decadência, se ela já não me acometeu.
Seus contos das duas últimas décadas tinham perdido o vigor. A contundência diluída em efeitos retóricos que, como também infere Sérgio Rodrigues, mais se parecem a imitações dele mesmo.
Ao fim da vida, parece que José Rubem Fonseca tinha virado um de nós, seus anões reais como os tantos que povoaram suas obsessões. Não faz mal. Tinha crédito para isso.
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