Minha resenha para entender a transformação sentimental do articulista impiedoso diante do trauma da paralisia cerebral de seu filho.
Leio A Queda, de Diogo Mainardi, na mesma semana em que os principais protagonistas de uma época — Lula, Marcos Valério e Roberto Jefferson — se encontram na mídia para ensaiar o drama de suas quedas particulares. Quem sabe, para avaliar o alto preço que pagaram por seus erros depois de terem estado no redemoinho do mais rumoroso caso de corrupção do país.
Um se escondendo da imprensa, o outro se debatendo no desespero de uma delação premiada para não ir preso e o terceiro se debatendo com um câncer que lhe corrói as vísceras e devasta a carcaça com que um dia galvanizou as atenções do país.
Diogo Mainardi foi, de certa forma, outro protagonista dessa época.
Colunista impiedoso, foi o primeiro a desmontar as imposturas da época, da malandragem disfarçada na falsa pureza do torneiro mecânico de gramática simplória ao tipo de comportamento ambíguo de personalidades tidas então como unanimemente respeitadas, na política, na imprensa e nas artes.
Tem um artigo famoso — Estou Ficando Rico — em que bate na reputação de ícones como Arnaldo Jabor, Miriam Leitão, Gilberto Dimenstein e Carlos Heitor Cony. Ícones que então ganhavam dinheiro aproveitando a onda de palestras em empresas e entidades interessadas em lobby.
Rico porque deixaria de pagar o dinheiro que fosse para não fazer esse tipo de palestra e frequentar esses auditórios onde teria que cumprimentar suinocultores, produtores de cana, vereadores e deputados.
Discípulo de dois dos maiores maiores niilistas e mais agressivos jornalistas brasileiros, Ivan Lessa e Paulo Francis, ele aprendera a escrever como quem distribui tapas e pontapés.
“Lição número 1: não escreva. Lição número 2: se realmente tiver de escrever, trate o resto da humanidade aos tapas e pontapés”.
A Queda trata também de sua queda particular, dos tapas e pontapés que teve que dar em suas convicções, desde que se descobriu com um filho com paralisia cerebral.
Em 23 de fevereiro de 2000, ele achincalhou sua falta de vocação para a paternidade em sua coluna na revista Veja. Escreveu que desejava ter um “filho tartaruga: toda vez que ele agitasse demais, bastaria revirá-lo de barriga para cima, e ele permaneceria parado, silencioso, sacudindo os bracinhos”.
Um ano depois, a neurologista deitou seu filho na maca.
“Naquele momento, ele deveria virar-se de barriga para cima. O que ocorreu foi o contrário: ele agitou os bracinhos, mas — como uma tartaruga — foi incapaz de revirar o corpo.”
Estava em fevereiro de 2001, quando o filho fazia cinco meses e Lula arrancava em sua campanha para se consagrar um dos maiores fenômenos eleitorais do mundo.
Desde então, ele afinou a arte de desprezar a humanidade com seus tapas e pontapés, num texto duro, enxuto, corrosivo, impiedoso, sem concessões a qualquer sentimentalismo.
“Eu tive meu filho tartaruga.”
Quando contou seu drama ao público, na coluna de 9 de maio de 2001, escreveu assim:
“Diagnosticaram uma paralisia cerebral em meu filho de 7 meses. Vista de fora, uma notícia do gênero pode parecer desesperadora. De dentro, é muito diferente. Foi como se me tivessem dito que meu filho era búlgaro. Ou seja, nenhum desespero, só estupor. Se eu descobrisse que meu filho era búlgaro, minha primeira atitude seria consultar um almanaque em busca de informações sobre a Bulgária: produto interno bruto, principais rios, riquezas minerais. Depois tentaria aprender seus costumes e sua língua, a fim de poder me comunicar com ele…”
Seus inimigos tentaram justificar tanta agressividade a um rancor mal resolvido. Eu mesmo, que não me enquadro entre seus inimigos, cheguei a tentar entender — como estou tentando fazer agora — em que ponto sua experiência afetou seu discernimento e envenenou seu julgamento do mundo e das pessoas.
Lendo A Queda, porém, concluo que, ao contrário do que acusavam seus desafetos, a experiência de cuidar de um filho que depende de atenção a cada passo só ampliou sua percepção do mundo e de seus verdadeiros significados.
Antes, revela um homem rendido pelo amor sem limites a uma cria que passou a lhe cobrar atenção e cuidados durante todo o dia.
Embora do mesmo jeito duro, frio, seco, preciso como bisturi, o texto expõe um homem encharcado de transcendência.
Está em busca de uma explicação para a conjunção de fatores que fez com que uma médica apressada para encerrar o expediente num sábado furasse
precocemente a bolsa amniótica, provocando uma asfixia que lesionou áreas do cérebro e atingiu para sempre o aparelho motor de seu filho Tito.
Como se trata de um cético irreversível, que resolve suas inquietações metafísicas absorvendo experiências estéticas, tenta entender na arquitetura barroca de Viena e toda a literatura que possa explicá-la a razão de sua má sorte.
Como se tivesse sido traído pela cidade amada que escolheu para viver e ter seus filhos.
— Imputo a Piedro Lombardo a paralisia cerebral de Tito — diz sobre o arquiteto que projetou a estupenda fachada da Scuola Grande di San Marco, prédio gótico transformado em hospital sob cujos átrios ele tinha um certo prazer de passar com a mulher Ana.
— Com esta fachada, aceito até um filho deforme – dissera a ela, alguns instantes antes de entrar.
O passeio continua e ele vai imputando a paralisia de seu filho a quem quer que que tivesse contribuído séculos afora para que estivesse ali, naquele dia, naquela hora, nas mãos daquela médica, para ter aquele filho e pudesse entender como tudo teria sido possível.
Fosse John Ruskin, o escritor que o fez conhecer a arquitetura de Pietro Lombardo, fosse Napoleão Bonaparte, que, em 1808, transformara a Scuola num hospital militar, depois transformado em hospital público.
– Imputo a Pietro Lombardo e a John Ruskin a paralisia cerebral de Tito. Imputo-a igualmente a Napoleão Bonaparte, sem o qual a Scuola Grande di San Marco jamais teria se transformado no hospital de Veneza.
Chega a ser emocionante perceber o cético de texto amargo se debater entre a gramática fria com que tenta encapsular suas análises e a força do sentimento que o vai transformando:
— Nada mais cômico para mim do que uma estimativa frustrada. Expectativa frustrada no progresso social, expectativa frustrada nas descobertas da ciência. Expectativa frustrada na força do amor. Eu sempre trabalhei com essa ótica anti-iluminista. Agora mudei. Passei a acreditar na força do amor. Amor por um pequeno búlgaro.
Seu filho, mais do que Pietro Lombardo, John Ruskin, Napoleão, Marcel Proust, Hitler e tantos outros que ele vai culpando em sua jornada, são agora irrelevantes.
Tito é agora o centro de seu universo. A ponto de contaminar sua gramática dura do mais escandaloso sentimentalismo:
— Quando as pessoas descobrem que meu filho tem paralisia cerebral, olham para ele com uma mistura de simpatia e piedade. Eu olho para ele como se olhasse para um totem: com devoção, reverência e sentimento de inferioridade. Dizem que, por causa da ausência de gravidade, um menino com paralisia cerebral está mais bem preparado para viver na Lua. Meu filho, portanto, é um homem do futuro, pronto para as viagens interplanetárias. Sabe aquele episódio de Jornada nas Estrelas em que os alienígenas de uma galáxia distante cismam que o capitão Kirk é deus? Pois eu sou os alienígenas, e meu filho é o capitão Kirk.
O título A Queda veio, entre outras inspirações, da tese de John Ruskin de que a arquitetura de um lugar tinha o poder de moldar o destino de seus habitantes.
Assim como a arquitetura gótico-bizantina da fachada do hospital onde ele aceitaria ter um filho deforme moldou a superioridade intelectual e moral dos venezianos, nos séculos XIII, VIV e XV, a arquitetura renascentista que viria a exterminá-la, “representara uma época corrompida pelo sentimento de soberba”.
“Sim: a Queda”, escreve, entre tantas outras que ele vai catalogando: a Queda da Bastilha que resultou na Queda da Sereníssima República que deu em Napoleão, que redundou na queda do hospital de San Marco que acabou nas quedas de Tito.
Todas as percebidas e imaginadas entre os 424 passos que ele acompanha com fervor religioso, atrás do andador de seu filho, seja nas pedras irregulares de Veneza, seja nas areias de Ipanema, para onde a família se mudaria em busca de um clima quente, ideal para crianças com paralisia, segundo o conselho médico.
Soberba. Ele não diz e não sei se nota, mas seu livro é todo um inventário sentimental e talvez arrependido da soberba que lhe fez passar a vida se preocupando com o universo e, em 2000, colocar sua esposa grávida no hospital mais bonito de Veneza, apesar de sua então fama de ruim e mal administrado.
“Com essa fachada, aceito até um filho deforme.”
A soberba que ele foi aprendendo a dominar, a ponto de cair com reverência e humildade aos pés do filho e tornar tudo, fora dele, irrelevante.
“Saber cair tem muito mais valor do que saber caminhar.”
Deixe um comentário