Já se disse que, de bunda de nenêm, urna e cabeça de juiz, nunca se sabe o que vai sair. Quando sai, porém, fora o alívio do primeiro caso, coloca as coisas nos seus devidos lugares.
A decisão da maioria do Supremo pela condenação de João Paulo Cunha e dos métodos de atuação de uma parte do petismo recolocou a discussão nos seus devidos termos. Pôs por terra de um só golpe todas as teorias conspiratórias ou apressadas sobre a possibilidade de controle da cabeça dos juízes pela mídia – tradicional ou alternativa – ou pelo governo.
Os juízes desmentiram tanto os que acusavam a mídia de um julgamento precipitado quanto os que, do outro lado do espectro político, já davam como favas contadas a condenação sumária com base na indicação política dos magistrados, já que oito entre os 11 deveriam satisfações a Lula ou Dilma. Gostaria a nação petista que seus amigos, pré-julgados e punidos injustamente pela mídia tradicional, saíssem ilesos do episódio. Como é certo que grande parte da oposição instalada nas redações ou nos computadores das mídias sociais torcia para que o resultado fosse acachapante para ser indiscutível.
Os juízes têm dito, porém, que não é bem assim. À medida que o julgamento avança, ouvidas defesa e acusação, vai-se sabendo que a engenharia de corrupção engendrada nos dois primeiros anos do governo Lula foi mesmo “atrevida”, como expôs o procurador-geral Roberto Gurgel e corroborou o relator Joaquim Barbosa. Mas que, entretanto, há nuances, penas variáveis, pessoas de carne e osso com maior ou menor grau de culpa.
O caso de João Paulo mesmo suscitou dúvidas levantadas com propriedade e coragem pelo revisor Lewandovski, dada a pressão geral e da desconfiança de que seria o principal cabo eleitoral de Lula no Supremo. Seus argumentos, porém, amenizaram o libelo sem dó do relator Joaquim Barbosa, contribuíram para jogar algumas luzes no entendimento da culpa do petista e demonstraram algumas falhas na acusação.
Não, João Paulo Cunha não poderia ter recebido uma propina de R$ 50 mil para garantir um resultado de licitação – em favor da empresa de Marcos Valério – sobre o qual, em tese e conforme os autos, ele não teria controle. Mas, sim, ele recebeu vantagem indevida e tentou escamoteá-la sob diversos artifícios. Se o dinheiro era mesmo do PT, como disse, por que não o recebeu do próprio partido, sob a luz do sol? Peculato e corrupção passiva, decidiram os juízes.
O caso é que, como se sabe, democracia é o pior regime que existe, fora todos os outros. Nelas, o Legislativo vigia o Executivo que nomeia os membros do Judiciário, que julga ambos, e vice-versa. Um faz contrapeso ao outro. O sistema de indicação dos juízes, consagrado em grandes democracias, é a salvaguarda que coube ao Executivo para não ficar refém da arbitrariedade dos juízes, mesmo sob o risco de ter-se o adesismo como contrário.
A Justiça também é ruim, tarda, falha e é incontrolável como bunda de criança. E nessa sua precariedade, sua insondabilidade, sua imprevisibilidade, a ideia de que não está sob controle, é que está a segurança dos cidadãos. Lula nomeou a maioria dos juízes, assim como fizeram Collor e Fernando Henrique, mas isso não significou vantagem imediata a seu favor. Sua indicação mais emblemática, a do primeiro negro no Supremo, resultou-lhe, antes, num carrasco.
Porque o ser humano, como a democracia, a justiça, as urnas e as bundas de nenêm, é um mecanismo falho e em constante processo de amadurecimento. Os juizes devem favor ao presidente e podem corresponder aos seus interesses? Podem. Mas isso é automático? Não necessariamente. Pode acontecer o contrário? Decidirem ao contrário de quem os indicou? Sim, muito. Além do caso de Barbosa, nenhum juiz será mais vigiado e terá que prestar mais satisfações sobre seu voto, andando na ponta da navalha, do que Dias Toffoli, o de mais notória relações com o ex-presidente e seu partido.
Porque há aquele mínimo de dignidade de que o homem não pode abrir mão que faz a diferença. Que faz com suas excelências, os juízes de longa carreira e todas as fragilidades humanas, mesmo devendo favores, tenham também princípios a considerar na sua relação com a sociedade e seus contemporâneos.
É com esse mínimo de dignidade que podemos contar.
(A propósito: “Democracy is the worst form of government except from all those other forms that have been tried from time to time.” Winston Churchill)
Foto de Fábio Rodrigues Pozzebom (ABr)