Transcrevo um trecho da carta de um veterano a um foca, sobre a ética do jornalista. No caso, Leon Machado, um escritor de obituários encostado na Editoria de Pesquisa de um grande jornal, dirigida ao jovem Gustavo Guerra, personagens do meu livro O Dossiê Rubicão – Quando a Morte Assume o Poder, de 2010, publicado em ebook na Amazon como O Presidente Vai Morrer.
O jovem descobre que Tancredo Neves, o único político capaz de fazer a transição pacífica da ditadura para um governo civil, tem uma doença grave e pode não tomar posse. Vai tentar dobrar o mundo nos sobressaltos da juventude para tentar publicar o furo de reportagem que ninguém dar.
Segue:
“…Se há algo a aprender na esfinge Tancredo que você vem tentando desesperadamente decifrar, é a lição de que, mesmo tendo que lidar com as miudezas e as pequenas vilanias com que a vida lhe cerca, é preciso não perder de vista a grandeza embutida numa visão global e holística do mundo. A capacidade de distinguir entre uma e outra e fazer escolhas difíceis vai definir se você será um bom ou um mau jornalista, um pequeno ou um grande homem, mesmo que o meio lhe seja hostil e lhe acene com facilidades de curto prazo.
Um bom jornalista tem uma visão de longo prazo, estrutural, do país, do mundo e de seus fenômenos. Como já disse Mino Carta sobre o mestre Cláudio Abramo, “conhece as esquinas do efêmero, mas não se perde na perspectiva do perene”. Uma coisa é fazer uma matéria sobre uma nova tecnologia de coração e médicos, aparelhos e instalações hospitalares. Outra, maior, é perguntar quantos hospitais estão aptos a fazer a cirurgia, quantos cidadãos virão a ter acesso a seus benefícios, quais as possibilidades de a rede pública oferecer o mesmo serviço aos milhares de miseráveis que morrem todo dia nos corredores abarrotados dos postos e hospitais públicos escangalhados. Quando for pautado para uma nova matéria sobre o último programa de computador que facilita o funcionamento dessas máquinas horrendas que idiotizam os homens, pergunte-se quando ele chegará ao menino desdentado de Caruaru ou quanto de estupidez ele poderá embutir nos inocentes dos apartamentos da classe alta.
E também uma só ética. Cláudio Abramo, para ficar num exemplo do quão pouco podem jornalistas que constroem impérios e quedam sob o peso de não negociar com suas convicções, costuma dizer que a ética do jornalista, como a do marceneiro, é simples: não existem duas. Não gosto de marcenaria e tenho pouco apreço por trabalhos manuais. Meu mundo é o da perquirição sem fim dos devaneios da memória. Mas também acho, como ele, que a ética do jornalista é a ética do cidadão comum, do trabalho correto, feito dentro do prazo, com apuro técnico e dedicação, sem mentir, sem descumprir a palavra empenhada. E eu acrescentaria que é também a ética da humildade.
Candidatos a intérpretes do mundo, jornalistas nunca devem se arrogar a pretensão de ser dono dele.
Bons jornalistas como bons homens são como pedreiros dignos que têm consciência do tijolo que colocam na catedral, mas com a consciência permanente de que não são donos dela. O que não os exime de discutir sua utilidade e seus propósitos. Bons jornalistas são cães vigilantes do poder e devem questionar sempre seus excessos, mas nunca perder de vista que também são membros de uma elite e peças da mesma engrenagem, com variados graus de ambição e de debilidade. Miserável é o jornalista que tem a ingenuidade de se achar fora do status quo e pretender olhá-lo por cima do seu nariz. Jornalistas são parte, sem que seja preciso que se tornem cúmplices. Estando dentro, precisam ter consciência de seus limites e que o sistema os expelirá quando se tornarem obsoletos ou inconvenientes.
Todas as duas coisas podem ser tomadas como um elogio se a decadência for defesa de instrumentos que estão caindo de moda, como a dignidade, e a inconveniência um tipo de serena resistência à cumplicidade. Jornalistas serão bons e dignos se refrearem suas ambições, tiverem consciência de sua real estatura diante da máquina e a humildade de não se arrogarem a salvadores, sem antes uma rigorosa consciência de seus limites. A médio prazo, todos ficamos obsoletos tecnicamente e o que restará são as convicções e a retidão com que nos portarmos diante de nossos semelhantes.
E, por fim, por decorrência natural de tentar controlar o mundo, nunca devem cair na tentação de adivinhar e prescrever o futuro.
Ao longo de toda minha carreira tive a pretensão de organizar o universo fazendo prognósticos para o futuro e publicando-os como se fossem verdades indiscutíveis. Castelinho ensinou que nunca se deve publicar além do que se sabe, mas eu, como a maioria dos jornalistas de minha geração, caí no desvio de fazer previsões que um dia descobri como sintoma de prepotência crônica da classe. Hoje reconheço que não passa de uma vontade de superar a impotência de mudar o presente. Assim como projetava o futuro, hoje me restrinjo a escrever sobre o passado, que é também um tipo de fuga de um presente que nunca me afigurou como satisfatório. Ou que me apresenta, a cada hora, a conta de meus fracassos.
Não estarei aqui para assistir, nem ao triunfo ou ao fracasso de Tancredo, nem à sua glória ou à sua decepção. Guardadas as proporções e minha insignificância, também procuro decidir a minha hora depois de ter falecido outras vezes em vida, sem, entretanto, a mesma capacidade de Tancredo e Vargas de dar a volta por cima.
Morri pela primeira vez quando vi um projeto de jornal e de vida ser transformado num simulacro. Estão aí todos na Redação felizes e integrados a esse Projeto Folha do Povo, após as resistências e os solavancos iniciais, sem perceber que esse amontoado de papel inútil em relatórios e manuais, gerado sob a pretensão de vigiar e questionar o sistema político e econômico injusto, acabou criando outro com os mesmos defeitos — arrogância, pretensão ao monopólio da verdade, disparidade de tratamento entre os profissionais, pressão por prazos, metas e compromissos sufocantes e desrespeitosos à dignidade humana. E com resultados discutíveis: os melhores textos do jornal não são desses menininhos adestrados nos cursos e seminários internos, mas dos bons e velhos companheiros de imprensa, detentores de um acervo de conhecimento e de uma visão além das circunstâncias.
Esses velhos companheiros estão morrendo um pouco a cada dia e enterram comigo um tipo de jornalismo. Mas não aceito que me conduzam ao sepulcro como um modelo romântico ou um boêmio ultrapassado. Nem que me empalhem como um dinossauro respeitável a que se deve reverência, embora ressalvando-se a obsolescência, como ainda diria Mino Carta. Não. Se morro com algum tipo de jornalismo, é o do caráter, do discernimento, da palavra empenhada, do respeito aos princípios da cordialidade, da condescendência com as fragilidades humanas e de permanente autocrítica de meus limites. O meu jornalismo não é o do convencimento pela prepotência, mas o do conhecimento pela humildade. A Redação está cheia de uma fauna vaidosa de meninos petulantes, recém-formados, que enfiam um gravador na cara do entrevistado como promotores e juízes do mundo e disparam suas metralhadoras giratórias contra tudo e todos, sem considerar suas deficiências pessoais e sua ignorância a respeito das nuances da vida.
Morri pela segunda vez quando perdi minha filha para a vida e um pouco a cada dia quando tentava mostrar-lhe de novo o caminho de casa e trazê-la de novo ao meu peito. E morri como nunca quando, traindo todas as minhas convicções, tresloucado de impotência e ressentimento, destruí seu apartamento em busca de uma apostila que me pertencia e cujo valor — o tempo mostrou — era absolutamente irrisório. Morri mais vezes quando, por vingança ou, pior, por piedade, ela tentou vender minha dignidade — sabe-se lá a que preço — a esse jovem diretor de Redação a quem não me sinto confortável de oferecer um cumprimento.
E morri agora há pouco, quando perdi para sempre a mulher que havia escolhido para me acompanhar até a morte por velhice. E morro mais um pouco agora ao saber que não será por amor — e talvez por pena e remorso — que ela me acompanhará até a sepultura, daqui a dois dias.
De todas as mortes, a mais fácil é a que tomo a decisão de providenciar agora. E o faço com surpreendente serenidade. Dessa câmera ardente de fotos e jornais velhos onde me confinei nos últimos anos, interpretando o passado e projetando o futuro, sem passar pelo presente, contemplo meus fracassos pessoais com generosidade.
Surpreendentemente, não te culpo. Tributo sua traição à falta daquele discernimento próprio da idade que, de gravador em punho, destrói reputações. Na vida pessoal, tem dificuldade de distinguir entre direito e conveniência e perde a perspectiva do todo para se enredar nas pequenas vilezas como um cacoete da idade. Não preciso dessa mixórdia da teoria psicanalítica para entender que projetei em você e suas afobações em busca da verdade todas as minhas ilusões de juventude e, de alguma forma, concluí que, no seu lugar, teria feito tudo do mesmo jeito. O embevecimento por Leonora certamente não estava em suas contas e — como eu um dia — também lhe tirou a noção de perspectiva.
Não teria tal desprendimento se não percebesse, antes, como uma homenagem, que suas tentativas de roubar meus tesouros mais caros são tentativas inconscientes de vencer o pai que escolheu como modelo. Assim como talvez eu estivesse atrás do filho que não tive e tentando fazê-lo melhor do que fui, aceito com resignação e até certa admiração o menino desarvorado que procura se afirmar através de minhas conquistas. E desejo sinceramente que você seja feliz com ela e que seja capaz de prendê-la a você até seu último dia, como não consegui. E que, tendo o filho que também não consegui lhe dar, o crie com a competência que também me faltou como pai.
E, se me permite, nunca perca a perspectiva.
Como Tancredo, se um dia tiver o seu Rubicão, vá devagar e não tire os sapatos antes. E, ao chegar nele, não pague qualquer preço para atravessá-lo.
Da planície em que se encontra, suba sempre à montanha para contemplar o quão tudo é pequeno e recuperar a consciência de que tudo passa. E quando passar — esse Projeto FP com suas verdades absolutas, essas invenções da modernidade com suas promessas de facilidade, essa Nova República com suas ilusões desmedidas — só restará você, sozinho com suas convicções. De pé ou de joelhos, pequeno ou grande, dependendo de suas escolhas.
Escolha o bem.
j. L. M.”
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