Políticos cogitam impressão de voto para neutralizar ameaças de golpe de Bolsonaro, mas ele pode procurar outras desculpas para fazer sua invasão de Capitólio
Partidos e políticos estão apressados em criar uma solução de voto impresso, como caminho mais curto de tornar sem efeito as ameaças de golpe do presidente Jair Bolsonaro, que prometeu em live não entregar a faixa presidencial se duvidar do resultado.
Na pressa, não levam em conta as particularidades da urna eletrônica, que fazem dela um sistema menos pior que todos os outros. Nem a hipótese muito provável de que Bolsonaro pode arranjar nova desculpa depois de contornada essa.
A urna eletrônica brasileira tem a precisão de uma caixa registradora, capaz de armazenar e entregar com exatidão, quando acessada, a lista dos valores digitados e de quais produtos mais vendidos. Ou votados pelo consumidor.
É zerada pela manhã e emite um boletim ao final da tarde, impresso, para futura conferência. Embora os valores/votos sejam embaralhados para evitar uma ordem que possa violar o sigilo, não tem como haver discrepância entre o digitado e o impresso.
Fica tudo registrado e acessível à fiscalização de candidatos e partidos. É lacrada antes e depois, submetida a checagens permanentes, submetidas a comissões de notáveis, autoridades, partidos, técnicos e organismos internacionais.
O TSE já a submeteu a testes de hackers e comissões técnicas de alto nível de faculdades e institutos de tecnologia. Os hackers nada conseguiram. A maioria dos pareceres sugere mecanismos de redundância e impressão que poderiam garantir mais confiabilidade, sem indicar, porém, vulnerabilidades.
É em parte disso que o TSE se fia para rechaçar a possibilidade onerosa de impressão do voto, já disponível na segunda geração dessas máquinas e em outros países.
O problema não está nessa registradora burra, como felizmente burros são todos os sistemas informatizados, tão competentes quanto mais repetitivos. O que os diferencia para melhor em relação aos homens é a rapidez e precisão. É impossível que um “17” digitado nela vire um “13”, como se poderia rasurar a caneta num mapa manual.
O problema real está na ação do homem fora dela.
Embora o sistema seja encriptado e a urna isolada da internet, como uma boa cafeteira elétrica desligada de computadores, há ação humana entre o boletim de urna, o transporte do pen-drive e a inserção de dados na rede do TSE.
Nada é mais descartável sobre o que pode um hacker hoje, capaz de trocar números de um código de barra digitado num celular infectado ou de trocar um 7 por um 3 num cartão de memória de votos injetado numa rede de computadores.
Mas se trata de uma possibilidade infinitamente mais complicada e remota do que qualquer outro sistema anterior, a anos-luz do modelo impresso exposto a um sem número de pessoas, sem qualquer especialidade.
De forma que, com sua burrice e competência repetitiva, isolada das redes, lacrada, encriptada e checada, refratária a qualquer ação direta do homem, nossa urna é como a democracia — o pior sistema que existe, mas não inventaram melhor.
A tentativa dos políticos de adotar um sistema de impressão, em resposta à pressão chantagista do presidente, não melhora o sistema. E agrega o elemento humano que sempre distorce e requer controles inúteis.
Bastará uma queixa, uma denúncia sacana ou uma digitação involuntária, e todo o sistema será colocado em xeque e hibernação, para uma checagem impossível porque firmada na má-fé e não no interesse genuíno de esclarecer.
Imagine que um bolsonarista digite de propósito o 13 de Lula e saia denunciando seu voto impresso às câmeras de TV. Com base em suas redes sociais, seu histórico de vida e sua bandeira nacional enrolada no corpo, contesta que seria impossível que não tivesse digitado outro número que não 17.
Seria possível demonstrar que, à hora tal e minutos tais, ele só poderia ter digitado o 13? Daria para convencê-lo de que tivesse digitado errado? Seria factível conferir o seu voto com os milhares de recibos, segunda via, depositados ao lado da urna?
A não ser que o voto seja aberto e público, em que seja possível conferir nome, assinatura e sequência de voto, não vislumbro qualquer forma de controle misto que possa saciar a desconfiança, contaminadora, e muito menos a má-fé.
E menos ainda a disposição de Bolsonaro de aceitar a solução. Acham os políticos mobilizados para adotar o voto impresso que vão conter Bolsonaro?
Por suas ambições e seu histórico de encrenqueiro, é razoável supor que deseje exatamente isso ou que procure outros motivos para não entregar a faixa presidencial.
Parece sonhar com uma reedição da invasão do Capitólio, com que seu guru Donald Trump colocou fogo no país para preservar sua vaidade e sua base eleitoral.
Ele conhece o suficiente do sistema pela qual foi eleito sete vezes e seus filhos outras tantas, sem reclamar. Sabe que a corrupção se faz por fora, por ação humana no submundo dos financiamentos e da manipulação dos meios de divulgação.
Certo que tem conhecimento de que as eleições são fraudadas no Brasil desde que se roubavam urnas na República Velha, independente da qualidade das urnas, dos sistemas de controle e do avanço das tecnologias.
Para ficar em dois exemplos mais recentes: toda a tecnologia já disponível em 2014 não impediu que a vencedora Dilma Rousseff gastasse em caixa dois o triplo dos registros de doação oficiais. E muito menos que ele, Bolsonaro, tivesse levado as eleições de 2018 em cima de disparo ilegal de mensagens pelo WhatsApp.
Nada impediu que um e outro tomassem posse, porque seus adversários não tiveram a mesma competência de burlar o pleito, com dinheiro ou tecnologia, e nem autoridade para denunciá-los. Coincide em nossa história que os vencedores, quase sempre, foram os que tiveram mais competência para burlar.
Talvez, ele não tenha vislumbrado ainda uma forma de fraudar as eleições, como sempre se fez até 2018, fora das urnas. Não tenha descoberto uma forma de ganhar limpo, que, não sem razão, pelos nossos costumes políticos, não parece viável.
E a seu jeito autoritário, acredite ser mais fácil mudar o sistema formal de votação e apuração do que o que se passará fora dele.
Melhor faria se investisse seu tempo e sua caneta em ações para eliminar todas as possibilidades de fraude. Ainda que quase impossível, lhe permitiria caminhar para as eleições com pelo menos a ilusão de igualdade na disputa.
Ou, então, se preocupasse mais em trabalhar para ganhar as eleições e não em disseminar a discórdia, contra seus interesses eleitorais, como vem fazendo.
Se ganhar, com fraude ou não, pode saber que leva. Como sempre foi. É no que deveria estar pensando. E não em golpes e fraudes.
> Publicado no Estado de Minas, em /7/2021
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