Presidente dá um passo atrás para dar dois à frente em conversa com Luiz Fux, depois de assustar o eleitorado com ataques, bravatas e pregação de golpe
Jair Bolsonaro saiu manso da reunião com o presidente do STF, na segunda-feira, em que prometeu moderar seus impulsos contra os outros poderes e sentar com os presidentes dos outros dois para o que Luiz Fux chamou de “estabelecer balizas constitucionais”.
Falou com os jornalistas com porte de chefe de Estado, sem se negar a responder qualquer pergunta, modulando em tons civilizados a única crítica que manteve, ao ministro Luís Barroso, que anda militando contra o voto impresso.
Rezou, num dia em que já havia falado de Deus duas vezes, a primeira para exigir de seu novo indicado ao Supremo, André Mendonça, que rezasse na abertura de cada sessão da Corte.
Só não se pode dizer que estava irreconhecível em relação ao tom de boteco das agressões e bravatas dos dias anteriores, contra imprensa, senadores da CPI, ministros do STF e adversários de 2022, porque se sabe que ele está sendo o mesmo.
Não é a primeira vez que recua, dá um passo atrás para dar outros dois à frente daqui a pouco, no mesmo tom ou um pouco mais agressivo dependendo de como andam as pesquisas e o cerco da imprensa ou da CPI da Pandemia em seus calcanhares.
Como já restou provado fartamente desde que abriu sua cruzada contra vacinas e máscaras e em favor de tratamento precoce, de um ministro “terrivelmente evangélico” ou de voto impresso, ainda não arredou pé de nenhuma de suas certezas, por mais sólidos argumentos em contrário.
Fez sucesso na última semana a manchete da Folha de S. Paulo que resumiu com maldade e precisão discutível o conjunto de avaliações de seu temperamento e competência no Datafolha: “Maioria acha Bolsonaro desonesto, falso, incompetente, despreparado, indeciso, autoritário e pouco inteligente”.
Faltou acrescentar “teimoso como uma mula”, não apurado no conjunto de questões em que também não se perguntou se batia em velhos e tomava picolé de criança. Embora a categoria possa estar contemplada no item “pouco inteligente”, sofisma de “burro”, o fanático da designação famosa que não abre mão de sua certeza mesmo já tendo esquecido o motivo.
A certeza dos sonâmbulos, que seguem em frente até bater a cabeça na pilastra, contornar e seguir em frente até outra, para de novo contornar e insistir.
Que me ocorre de uma frase de Adolf Hitler, com quem não tenho a menor intenção de compará-lo como pessoa, governante ou decisões, digo de antemão para evitar julgamentos apressados. Quero falar de trajetória e busca de poder.
A imagem do título foi dita na reocupação da Renânia, em 1936, quando seus generais duvidavam de sua estratégia de invadir o mundo, como começaria três anos depois, e ele evocava a principal de suas certezas.
A que lhe tirava o sono desde que deixou as trincheiras da Primeira Guerra, 20 anos antes, e se colocou a tarefa messiânica de que levaria a humilhada Alemanha à terra prometida: “Sigo meu caminho com…”
Está na abertura do documentário Como se tornar um tirano, da Netflix (veja trailler abaixo), e de um pequeno grande livro, A Mente de Adolf Hitler, do psicólogo Walter Charles Langer, contratado pelos aliados para traçar um perfil do ditador ainda no auge da Segunda Guerra, ouvindo seus contemporâneos.
O relatório de 1943, referência dos estudos de psicanálise sem presença do analisado, cruzou diferentes visões de pessoas que conviveram com ele e presenciaram a catarse mediúnica de seus comícios avassaladores, em que ele fazia a plateia dançar.https://c7d6a6d67cabbbb9123c0abf0f267e83.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Tentava entender o magnetismo por trás do sujeito insignificante pessoalmente — baixo, cabelo emplastrado, dentes estragados, calças curtas de suspensórios — que se transformara no mais cruel e paranoico dos governantes, psicopatia à beira da esquizofrenia percebida à distância.
Sua certeza sonâmbula tinha algo do messianismo em comum com a trajetória de todos os candidatos a ditador (veja a série, leia o livro) e pontos impressionantes com a de Bolsonaro, desde que se colocou a tarefa visionária de salvar o país do PT, ainda em 2014, depois da vitória de Dilma Rousseff.
Como Hitler e os maiores tiranos do mundo, também se utilizou do acaso de um atentado, a facada no seu caso, para criar uma mitologia de que fora ungido por Deus para cumprir uma missão.
Daí em diante, a escolha de um inimigo comum, os judeus ou o PT, a associação com os instintos mais primitivos de vingança da população, aliada a uma campanha cerrada por valores cívicos e religiosos, imprimiram sentido e agilidade à trajetória sonâmbula.
Ter batido a cabeça algumas vezes na pilastra da reação em cadeia das instituições não lhe impediu, salvo algum recuo tático como o da última segunda, de manter as mesmas ideias fixas até — e depois — das eleições do ano que vem.
Gilberto Kassab, que cresce como protagonista importante a cada sucessão desde a criação do seu PSD, há dez anos, resumiu essas trombadas com a realidade na frase curta e grossa que melhor explica a deterioração da sua imagem:
— Ele assusta o eleitor.
Como também os tantos candidatos a ditador, bem-sucedidos ou não, elas esbarram num momento em que passam de limites aceitáveis, como no dia em que Hitler invadiu a Polônia, Idi Amim Dada comeu o fígado do principal arcebispo do país e Sadam Hussein usou suas filhas para atrair seus genros de volta ao país, para matá-los.
É aquele ponto em que o terror, muito eficiente na dose certa para chegar ao poder, assusta, coloca todo mundo e a própria manutenção do poder na sensação de risco.
É farta na literatura das campanhas eleitorais, da construção dos mitos e da história dos ditadores, a necessidade de alguma dose de medo para ganhar eleições ou tomar o governo por outras vias.
O candidato bem-sucedido sempre ameaça o eleitor com a perda de algum valor se optar por seu adversário, dos mais imediatos — renda, saúde, segurança — aos mais supérfluos, liberdade e igualdade, dependendo das circunstâncias.
Collor dizia que Lula iria expropriar a poupança, Lula dizia que FHC iria entregar o país, Bolsonaro, que o PT iria invadir propriedades, proteger bandidos e deturpar a educação das crianças, num apelo irresistível à tríade de desejo dos humanos: casa, segurança e família.
Mas também toma o cuidado de ir só até o ponto em que ofereça risco. Em que o exagero não ponha em xeque sua capacidade de implementar o que promete (está vendendo terreno na lua), implique uma ruptura que ponha em dúvida sua capacidade de costurá-la ou acene para um futuro imprevisível.
Ameaças soam como promessas ao avesso para sinalizar um futuro possível, de paz e prosperidade, e a competência do candidato para implementá-lo. No excesso, podem estimular o medo e a desconfiança sobre o preparo para estar à frente dele.
É o momento que vive Bolsonaro. Esticou de tal forma a corda do golpe nos últimos dias, em ataques e desvarios numa impressão só sua de que isso pode ser o melhor para o país, que suscitou as três coisas:
– Dúvidas absolutas de sua capacidade de governar;- Outras tantas sobre sua competência para administrar o tranco depois de um golpe.;- E mais ainda sobre a possibilidade de um cenário de paz e prosperidade depois disso.
É nesse ponto que ele está. E não foi à toa que capitulou. Por enquanto. É aguardar seus próximos passos até nova pilastra de realidade.
>Publicado no Estado de Minas, em 5/7/2021.
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