Cinco reflexões sobre a celebração do mendigo pop, a diversidade no Oscar, a censura do bem na imprensa, a ética de Bolsonaro e dos ministros do STJ
- Brasília mendiga
Quis o destino que o caso do mendigo em estado de ereção, flagrado no carro com a mulher do personal, ocorresse na Brasília dos múltiplos poderes, a nossa Hollywood no sentido que lhe deu o dramaturgo estadunidense Wilson Mizner:
— Um bueiro com o serviço do Ritz Carlton.
Um canal de TV achou por bem entrevistá-lo em estúdio e espaço suficiente para descrever em detalhes pornográficos o que não era o mais importante na história e disparar a cadeia de contra-sensos que vai transformando-o em celebridade, sujeito a selfies.
Nada mais Black Mirror, a série sensacional da Netflix que antecipou o quanto ficaríamos bizarros e até hipócritas, quando não apenas zumbis, com a dependência da dopamina que nos empurra para os cliques.
Nada mais Brasília, onde funciona a fábrica de fatos — falsos ou verdadeiros — e toda a correia de transmissão que alimenta um estado geral de degradação, em que já não se sabe mais o que é certo ou errado.
Onde, não por acaso, um presidente da República arranjou um jeito de justificar o tráfico de influência de seu ministro da Educação e um tribunal superior condenar um procurador por ofender o réu.
Duas das cinco notas que vão aqui para ajudar a compor o quadro.
- O Oscar diversificado
O Oscar sempre adorou marcos para transformar cada prêmio em ato histórico.
Com o avanço da ideia de diversidade, foi evoluindo da primeira diretora ou roteirista mulher para o primeiro ou a primeira ator ou atriz negros e daí para vitoriosos de países latinos ou asiáticos, gays, lésbicas ou portadores de deficiência. O primeiro gay, a primeira lésbica, o primeiro anão.
Chegou ao ponto em que, ontem, o filme sobre uma família de surdos-mudos e uma filha cantora (No Ritmo do Coração), mais apropriado para uma sessão da tarde sem compromisso, levou a estatueta de melhor de filme ao desbancar um favorito digno do nome, Ataque dos Cães.
Sintomático que a diretora do preterido, a neozelandesa Jane Campion, tenha sido saudada em todas as transmissões como a primeira mulher a receber duas indicações de diretora (O Piano, na primeira) e terceira a ganhar o quase masculino prêmio de direção.
E você não fica sabendo se ela está ganhando de fato pela qualidade da obra ou por ser mulher.
- Censura do bem na imprensa
A grande imprensa ficou um tanto horrorizada com a arbitrariedade do TSE sobre a manifestação dos artistas em favor de Lula no Loolapaloosa, que parece ter ganho esse nome em homenagem ao petista: Lula-paluza.
Tivesse dado a mesma atenção quando o tribunal avançou com mão de ferro sobre sites e canais bolsonaristas ou apenas de direita, numa arbitrariedade descomunal fora de campanha eleitoral, poderiam ter evitado de alimentar o monstro.
Ao contrário, se divertiram.
Também comemoraram quando o The Washington Post teve bloqueadas pelas plataformas de mídia social sua denúncia sobre as relações suspeitas do filho de Joe Biden com uma empresa ucraniana. A censura foi determinante para proteger a campanha do democrata à Casa Branca contra uma de suas maiores vulnerabilidades.
Agora que o The New York Times descobriu que nada havia a encobrir e que as plataformas cometeram uma arbitrariedade digna de TSE, estão chorando na cama que é lugar quente. E tratando do assunto como se fosse novidade.
Tomara que fique mais atenta e menos seletiva de agora pra frente. Embora eu duvide.
- A ética de Bolsonaro
Jair Bolsonaro teve a cara de pau de dizer que sua campanha é a luta do bem contra o mal, tendo como papagaios de pirata no palanque os notórios Valdemar da Costa Neto e Fernando Collor de Mello.
Sua capacidade para interpretar mal circunstâncias desse tipo está na mesma origem da afirmação de que põe a cara no fogo pelo ministro da Educação, Milton Ribeiro, flagrado num momento de sinceridade com pastores que traficam influência por ajuda pública na construção de igrejas.
Outra origem é sua tendência para subverter a moral pública, que listei em sete variáveis determinantes nas minhas redes sociais:
1. Ele não demite ninguém de orelhada, porque a grande imprensa pediu. Pelo contrário. Se ela quer uma coisa, ele faz o inverso.
2. Não demite quem não o tenha traído. E demite fácil quem der uma escorregada, mesmo puramente verbal, que sugira traição.
3. Ouve mais a família e qualquer intriga dos filhos do que qualquer outro. Milton é afinado com Michele e os filhos presidenciais.
4. Costuma achar que o que todo político faz, como empregar parente ou distribuir verbas públicas por indicação, não é crime.
5. Vê em todo episódio em que apanha muito como positivo por parecer vítima e ativo eleitoral para suas redes sociais.
6. Relativiza qualquer denúncia que não tenha dinheiro vivo entrando diretamente no bolso de algum auxiliar. É o que entende como diferencial em relação às denúncias contra o PT.
7. Acha que as denúncias contra seu governo, sem dinheiro vivo, pode ser motivo e contraponto para fazer comparação em campanha com as provas contra o PT.
- O falso moralismo garantista
O STJ condenou o procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, a indenizar Lula pelo famigerado powerpoint que o coloca no centro catalisador de um sistema de corrupção que alimentaria uma cleptocracia.
O pedido de condenação só andou depois de rejeitado em duas instâncias e aprovado na terceira por ministros indicados por presidentes do partido do réu, no embalo de condenações do juiz do caso com base em provas ilegais de conversas hackeadas.
Como se trata de algo totalmente fora da curva, é irresistível não pensar num powerpoint semelhante sobre as patranhas do Judiciário. Apresentado com pompa numa coletiva festiva por Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, a partir dos resultados de uma CPI do único órgão com a competência para investigar e punir os usos e abusos do poder mais fechado e impenetrável da República.
Como Dallagnol, ele abriria sua apresentação anunciando “o conjunto de evidências para além de qualquer dúvida razoável” para provar que o Judiciário brasileiro está no centro de um sistema lerdo, injusto e seletivo, em que o garantismo parece ser mais o de seus interesses.
Partiria das muitas denúncias levantadas pela imprensa sobre desvios no campo administrativo e no exercício da justiça: penduricalhos para estourar o teto, nepotismo cruzado, férias de 60 dias, acúmulos de benefícios, venda de sentenças, julgamento de casos sob suspeição, opinião e militância política fora dos autos, abuso de autoridade. Etcetera.
Num processo amplo, democrático, sem escolha de alvos, Deltan Dallagnol poderia ser enquadrado por gostar de diárias polpudas e por ter se tornado procurador ilegalmente, graças a uma liminar controversa conseguida por seu pai, desembargador. Ele se inscreveu no concurso público para o cargo como estudante e fez as provas sem o tempo mínimo necessário de formado, de dois anos. Manteve-se por liminares.
Num arrastão legal, seria natural que Sergio Moro também fosse investigado com base tanto em privilégios funcionais quanto nas conversas heterodoxas mantidas com os procuradores durante os processos, razão de toda a campanha que tornou sem efeito seus atos, em benefício dos réus.
Por dever de justiça, porém, dentro de uma lista que incluísse juízes e ministros dos tribunais flagrados ou delatados por beneficiar parentes, julgar casos em que são suspeitos ou manter conversas indevidas com seus réus e advogados.
Algum ministro proeminente do noticiário, já acusado mais de uma vez de julgar caso em que era suspeito, telefonar para réu e advogar em causa de seus interesses particulares poderia figurar no centro da peça acusatória, para fins de efeito dramático na coletiva de imprensa, à maneira de Lula na peça de Dallagnol.
Também à maneira Dallagnol, sem necessariamente prova objetiva mas mas como centro catalisador, emblemático, cruzado por setas de diferentes direções, ligando os vários pontos de interesse — dos gabinetes dos tribunais aos do Congresso e do Palácio do Planalto, passando pelos escritórios de advocacia e de lobby político.
Certamente que, interessados e seguros em suas inocências, num gesto de boa vontade, as próprias Excelências teriam interesse em ceder seus celulares para perícia e prova de que nunca se envolveram em algum tipo de conversa não republicana com procuradores, advogados e políticos.
Também seguros de sua inocência, em nome da transparência e dos elevados interesses de promover o saneamento do sistema judiciário, os advogados mais concorridos de Brasília, com os quais se socializam, poderiam fazer o mesmo. Quem sabe um Kakay, que costumava ir de bermuda ao STF ou um Alberto Toron, que presenteou Lula com uma beca símbolo da autoridade judicial.
Único risco é Lula, com sua verve matadora, puxar o coro de toda uma militância poderosa para influir na opinião da grande imprensa em favor das vítimas togadas. Reinaldo Azevedo, um garantista das práticas do Judiciário, escreveria que Pacheco estaria violando o devido processo legal, com base em acusações sem provas.
E a gente ficaria com aquela sensação de vácuo moral comum a quase tudo hoje, de que tudo o que foi exposto e ilustrado pelo powerpoint é verdade, mas não pode ser provado.
PS – Ando sem ânimo de escrever sobre a sucessão presidencial porque não há novidades. Lula, Bolsonaro e terceira via continuam empacados num quadro bem consolidado que só terá definições importantes depois de três grandes eventos: a pesquisa DataFolha de junho, as entrevistas de 10 minutos com os candidatos no Jornal Nacional, em agosto, o 7 de Setembro, depois do que, como dizia Hélio Garcia, é que as eleições começam de fato. Me acordem lá.
> Publicado no Estado de Minas, em 29/3/2022.
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