Boa vontade com Kalil e seu desastre econômico em BH só acentua como o bolsonarismo virou estigma que contamina a análise da mesma situação no país
É tão errado dizer que Jair Bolsonaro é o culpado absoluto pela situação da economia do país quanto que Alexandre Kalil o é pela quebradeira de Belo Horizonte.
Sua obsessão pelo isolamento geral, antes da hora e numa sanfona de abre e fecha às vezes contraditória com os índices da pandemia, arrebentou pelo menos mais da metade dos negócios promissores.
Pelo menos até onde minha vista alcança na zona sul, onde eu e ele costumávamos jantar em ambientes elegantes — e mesas separadas, claro — da região reflexo dos potenciais da terceira capital do país.
É injusto culpá-lo, entretanto. Naqueles primeiros dias de março de 2020 em que comparávamos nossa pandemia com a Peste Negra da Idade Média ou a Gripe Espanhola, e o governador Zema montava hospitais de campanha que nunca seriam usados, concordávamos todos com ele.
— Então, nós temos que salvar o maior número de vidas, porque a tragédia econômica não é no Brasil, é no mundo.
Ao pé da letra, o país de Bolsonaro passou pelo mesmo tsumani, nas mesmas datas e no mesmo nível de quebradeira, mesmo onde não houve lockdown. Seu desastre é o possível por que passaram todos os países por onde a nova peste andou.
Os 38 indicadores positivos ou estáveis de seu governo dos 101 analisados nesta semana pela Folha de S. Paulo foram os menos abalados pela conjuntura, como exportações. Assim como boa parte dos 63 negativos decaíram em consequência dela, como educação, saúde e emprego.
Fora, é claro, os que Bolsonaro vinha piorando por conta própria e de sua visão de mundo, como Meio Ambiente, ainda que, do seu ponto de vista, reduzir áreas de reforma agrária não deve ser considerado indicador negativo.
Mais ou menos como a favelização das ruas da capital, que Kalil já vinha agravando por um misto de leniência e visão social um tanto quanto deturpada. A pandemia só modernizou em barracas de nylon as moradias de papelão, colchão e panelas que se espalharam como cogumelos pelas principais ruas e praças.
Entretanto, temos mais boa vontade com Kalil. Menos por sua capacidade administrativa, que na pandemia empatou em zero a zero com a de Zema ou a de Bolsonaro, do que por diferenças de personalidade.
Não só porque é mais bonito e aceito socialmente posar de esquerda como ele, mas também pela capacidade de não ser burro na hora errada e nem o que é o principal defeito de Bolsonaro à luz da opinião influente nos meios de comunicação e das mídais sociais: ser bolsonarista, na pior acepção da palavra.
Bolsonaro não errou só por fatalidade, como Kalil, mas ampliou o conceito por ter contestado tudo o que a maioria da população precisava, queria ou acreditava, a respeito de isolamento, uso de máscara e vacinas.
À ideia do conservadorismo apenas refratário à mudança dos costumes, que define essa corrente, agregou o estigma de negacionismo, despreparo e truculência com os críticos.
Acabou mais bolsonarista que os bolsonaristas mais radicais. E, como Zema e os poucos que ainda têm coragem de defendê-lo, pagando um alto preço na opinião publicada da mídia monopolissta, que lhe faculta uma cobertura eivada de uma má vontade ambulante, militante e incontestável. Tanto mais forte quanto mais parece inconsciente.
Ele apanha quando avança e quando recua. Tome-se o caso mais recente do aumento do fundão eleitoral pelo Congresso, de R$ 2 bilhões para R$ 5,7 bilhões.
O grosso das análises garantia que ele não vetaria ou vetaria o aumento sob um arranjo para que os deputados dobrassem a verba para R$ 4 bilhões. Tudo combinado. Na leitura de todo a avalliação a respeito, os R$ 4 bilhões tinham virado verba carimbada.
Quando ele vetou o aumento, não foi só a má vontade do destaque, segundo a regra universal jornalística de que o desmentido nunca é maior do que a denúncia. Mas uma nova onda de críticas de que continua camuflando manobras e intenção de deixar o centrão chegar a pelo menos R$ 3,4 bilhões, num novo projeto de reajuste do que foi gasto na eleição de 2018.
Num tipo de histerismo mesmo em analistas respeitáveis, o novo ministro da Saúde Marcelo Queiroga foi classificado como um “novo Pazuello”, em referência à subserviência do antecessor, menos de 12 horas depois de indicado.
Fosse ou seria, não havia elementos suficientes para julgá-lo em tão curto prazo, a não ser pelo fato de ser… bolsonarista e por certo incorporar seus estigmas.
A ideia de que havia um bolsonarista no Planalto contaminou os destaques da CPI da Pandemia no noticiário. A cobertura mimetizou o padrão de inquirição Renan Calheiros de amplificar as falas dos inimigos do governo e relativizar o depoimento dos seus defensores. Tremendos bolsonaristas, claro.
E a de que também havia um bolsonarista no combate à pandemia, contaminou o viés da cobertura dos índices de vacinação, cujos critérios mudavam para realçar o fato de que há só um bolsonarista insensível no poder seria capaz de tais resultados.
Por essa régua, em cima de números absolutos, o Brasil foi por bom tempo o país que mais mata e menos vacina. A régua proporcional de morte ou vacinado por milhão, que coloca o país em situação melhor que muitos países da Europa e do G20, não é e nunca foi o destaque.
Por um bom tempo, Chile e Israel foram colocados como referência de competência no ritmo da vacinação, comparando-se, aí sim, relação entre vacinados e população.
“Quase metade do Chile já foi vacinado” ou “Israel já tem quase 100% da população vacinada”, por exemplo. Sem o registro de que haviam vacinado menos que o Brasil em números absolutos e a comparação de que se tratam de países menores que Minas Gerais.
Leia: Afinal, Brasil vacina pouco ou muito? Confira 5 dados do ranking global
No cacoete de atribuir a Bolsonaro tentações seguidas de golpe, que só pode ser coisa de um bolsonarista como ele, circulou sem contestação nos últimos dias uma entrevista do ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, de que Bolsonaro havia autorizado a Aeronáutica espatifar os vidros da sede do STF em voos rasantes dos caças Gripen.
Como não é possível duvidar de que um bolsonarista como esse seria capaz de tanto, ninguém foi apurar o que só Leonardo Coutinho, um jornalista sofisticado da Gazeta do Povo, de Curitiba, ex-Veja, tuitou. Que o Brasil sequer tinha caças Gripen na época dos atos, abril de 2019. O primeiro dos 36 comprados por Dilma Rousseff em 2014 chegaria para testes cinco meses depois, em setembro.
A certeza de tanto bolsonarismo numa pessoa só à frente dos destinos do país ajudou a abater quase tudo o que ele propôs em campanha, da pauta de costumes às reformas econômicas. E é natural que chegasse à crítica de seu desempenho econômico. Independente do estrago conjuntural da pandemia.
“Mito destrói a economia”, bradou no título de um de seus comentários na rádio Band, Reinaldo Azevedo, um de seus oposicionistas mais brilhantes e não menos típicos. Carlos Andreazza, na CBN, espumava nesta quarta-feira contra os índices horrorosos de desemprego e salários.
Queriam o quê? Que fosse diferente a essa altura? É razoável, adianta agora, dizer que Bolsonaro destruiu o país assim como Kalil acabou com Belo Horizonte? Excetuando-se, se fosse possível, o que há de bolsonarismo na análise das ações do governo, ele seria melhor? É possível dizer algo que valha à pena?
Há razoável consenso, até entre bolsonaristas sensatos de fato, de que Bolsonaro teve um desempenho desastroso no combate epidemiológico à pandemia. Mas uma boa vontade sem contaminação bolsonarista apontaria para o fato, incontestável, de que as escolhas de Paulo Guedes fizeram com que a travessia econômica de nossa maior tragédia fosse menos traumáticas do que se esperava.
> Publicado no Estado de Minas, em 26/8/2021
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