Jogador extrapolou direito de opinião que atiçou cancelamento da militância identitária, mas não cometeu crime configurado em lei que não existe e atraiu solidariedade cristã
A lei 7.776/89, que estabelece os crimes de racismo, diz que serão punidos quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
Ela não inclui o crime de discriminação por comportamento ou opção, possivelmente porque os legisladores entenderam que deveriam proteger quem for agredido por condição de que não possa mudar: raça, cor, etnia, crença em Deus ou nacionalidade.
Em junho de 2019, entretanto, o STF resolveu legislar e incluir a homofobia entre os crimes abrangidos pela norma, até que o Congresso aprove uma lei atualizada a respeito.
Sim, a Suprema Corte do país, responsável por elucidar de forma definitiva a interpretação das leis, estabeleceu que fica valendo algo que não está na legislação em vigor, mas que pode estar no futuro, mesmo que um projeto de lei a respeito venha a ser rejeitado.
É tão escalafobético que só se explica pela natureza biológica de uma Corte que inventou o “flagrante continuado” que horroriza até estagiários de direito, legisla sem pudor e onde até então era seguro dizer que só havia um legalista que não vota pela capa do processo.
Marco Aurélio Mello, único voto contrário, hoje aposentado, que não por acaso achou a votação um horror. Em entrevista à BBC Brasil, resolveu desenhar para os colegas o que diz o artigo 1º do supremo Código Penal:
– Não há crime sem lei que o defina, é um passo demasiadamente largo que eu não dou. A normatização cumpre ao Congresso, o monopólio da força é do Estado, e mediante decisão judicial não se pode chegar a tanto.
Pois foi essa estrovenga que deu a base principal ao massacre que se perpetrou contra o central do time de vôley do Minas, Maurício de Souza, por sua postagem intolerante contra homossexualidade, que não se enquadra, mesmo com boa vontade, nem na decisão ideológica dos supremos.
Ele não induziu ou praticou insulto, agressão ou violência comprováveis contra alguém específico, como os que dão base a prisões em flagrante delito, mais comuns nos casos de racismo ostensivo contra negros que volta e meia frequentam o noticiário.
Emitiu opinião sobre seus valores, excrescente se alguém quiser assim considerar e contestar, não punível por nenhuma democracia que acredita que qualquer conduta humana, de qualquer nível da pirâmide social, é passível de crítica desde que não haja insulto ou violência.
Sua postagem deve ser entendida no contexto de um conjunto de outras, em que o atleta expunha seu desconforto com o identitarismo, a corrente ideológica que luta por igualdade controlando o que a sociedade pode pensar e dizer.
Havia feito postagens sobre a linguagem neutra, a partir da notícia de que a Globo cogita lançar novela já adaptada à novidade, e a normalização de atletas trans em competições femininas, apesar das óbvias e injustas diferenças biológicas na disputa.
É quase certo que tenham sido essas, somadas ao fato de que o atleta professa um bolsonarismo xenófobo militante, diga-se, que tenham acionado os botões da militância identitária contrária, que ganhou repercussão e rapidamente adeptos de peso no cerco ao transgressor.
Como os patrocinadores do time, Fiat e Gerdau, que pressionaram a direção do clube a tomar uma decisão a que resistia. Foi a motoniveladora da pressão política, aliada enfim ao risco sério de prejuízos financeiros, que levou a direção do Minas a tornar sem efeito uma conversa com que tentava contornar o problema por meios civilizados.
É um jogo político legítimo desde que o chamem pelo nome. Uma guerra cultural para convencer a maioria de que pessoas da direita como Maurício estão também em campanha política para cristalizar preconceitos derivados de construções sociais milenares.
Superado o problema da legalidade e da tentação política que tudo contamina e em que há poucos inocentes nesse mundo conflagrado, resta o incômodo legítimo de uma grande maioria sensibilizada por uma postagem intolerante.
De fato depreciativa sobre um largo espectro da sociedade que acha inadequado sugerir que beijos entre homens numa revista em quadrinhos possa incitar alguém a ser homossexual. E se incitar, qual o problema?
Essa grande maioria não leva ao pé da letra nem a lei, nem oportunismo político e nem mesmo o que disse Maurício. Por tudo que li nas redes sociais, inclusive nas minhas, a maioria de bom senso admite que ele extrapolou, mas que também foram desproporcionais as decisões draconianas do time contra ele.
Como desproporcional acabou sendo o massacre impiedoso que, por excesso, também provocou reação contrária de solidariedade. A polêmica elevou para mais de 3 milhões o número de seguidores no seu Instagram e a hashtag #StomosTodosMaurício subiu aos trending topics do Twitter.
Não acredito que sejam apenas de reacionários bolsonaristas em plena militância, como gostaria de acreditar a militância contrária. Mas homens e mulheres também movidos, menos pela busca da verdade, talvez, mas por uma reparação daquele tipo movido por piedade pelo pecador.
Me parece um princípio cristão que ainda se esforça por resistir em meio a tanta maldade no mundo, a tanta militância à direita e à esquerda e a uma judicialização política que só acirra os ânimos.
Maurício foi mais militante que cristão para ser intolerante com as diferenças, mas há uma maioria, para além da militância que começa no STF e acaba nas ruas, que o perdoa. Que passa longe do justiçamento ou da política para resolver seus conflitos morais.
Acredito que pode ser o que mobilizou a diretoria do Minas a, primeiro, tentar enquadrar o atleta sem puni-lo. Ou tenha movido a sempre sensata vereadora Duda Salabert a optar por uma advertência educativa a uma acusação judicial belicosa no caso em que foi humilhada num salão de beleza do Shopping Cidade.
São princípios cristãos em que prefiro acreditar, não estivesse também inspirado pelas vésperas do Finados, que sempre me deixa sensível.
Publicado no Estado de Minas, em 31/10/2021
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