Entenda o escândalo que provou como é possível publicar qualquer bobagem identitária na área de Ciências Sociais desde que inclua seus chavões e sua literatura
Em meados de 2018, uma das publicações científicas americanas líderes da geografia feminista, a Gender, Place & Culture, publicou com alta badalação e destaque entre os 12 melhores de sua edição comemorativa de 25 anos o artigo “Parques Caninos”.
Uma defesa do adestramento de homens como cães como forma de combate à cultura do estupro, a partir da observação de que parques caninos são espaços de apologia ao estupro. Assentava-se em vasta literatura de estudos de raça, gênero e identidade e um título prolixo típico desse universo: “Reações Humanas à Cultura do Estupro e à Performatividade Queer em Parques Urbanos para Cães em Portland, Oregon.”
Tinha passado pelos trâmites longos e rigorosos de aceitação de artigos científicos, com exame e refutação de pares da academia, e colhido pareceres empolgados como o de que significava “contribuição importante à geografia animal feminista”. Ou:
“Este é um artigo maravilhoso, incrivelmente inovador, rico em análise e extremamente bem escrito e bem organizado, dados os conjuntos de literatura incrivelmente diversos e questões teóricas postas em questão. O desenvolvimento que a autora faz do foco e das contribuições do artigo é particularmente impressionante. O campo de trabalho desenvolvido contribui imensamente à contribuição do artigo como um trabalho acadêmico inovador e valioso, que atrairá os leitores de uma ampla gama de disciplinas e formações teóricas.”
Por essa mesma época, a não menos respeitável Sexuality & Culture, publicou outro em defesa da tese de que o uso de consolos por homens pode ajudar a combater a transfobia e reforçar valores feministas. Título: “Entrando pela Porta dos Fundos: Desafiando a Homohisteria e a Transfobia de Homens Heterossexuais através do Uso de Brinquedos Eróticos Penetrantes”. Tão fundamentado, analisado e aprovado quanto:
“Este artigo é uma contribuição incrivelmente rica e empolgante ao estudo da sexualidade e da cultura, e particularmente da intersecção entre a masculinidade e a analidade. … Essa contribuição, por certo, é importante, vem em boa hora e é digna de publicação.”
A Sex Roles publicou sob os mesmos trâmites outro sobre objetificação sexual a partir da análise de homens que frequentam restaurantes de garçonetes de peito semi exposto, os “peitaurantes”, como sintoma de herança patriarcal e desejo de dar ordens a mulheres atraentes: “Uma Etnografia da Masculinidade de Peitaurante: Temas de Objetificação, Conquista Sexual, Controle Masculino, e Firmeza Masculina num Restaurante Sexualmente Objetificador”
E a também honorável Fat Studies publicou sob o mesmo rigor a tese de que “o corpo gordo é um gordo legitimamente cultivado” e que a obesidade mórbida é um estilo de vida saudável, distorcido pelas “normas culturais que fazem a sociedade considerar o cultivo de músculos em vez de gordura como algo admirável”. Título: “Quem São Eles Para Julgar?: Superando a Antropometria, e um Arcabouço para o Fisiculturismo Gordo”.
Entre os elogios dos pareceristas, uma restrição risível, reveladora das obsessões dessa tribo:
“[O] uso do termo ‘fronteira final’ é problemático ao menos de duas formas. Primeira — o termo ‘fronteira’ sugere a expansão colonial e a posse hostil, e o apagamento genocida dos povos indígenas. Encontre outro termo.”
Três outras grandes publicações analisavam empolgadas, pela ordem,
- um artigo sobre a masturbação masculina como indício de violência sexual contra a mulher, mesmo que ela não consinta ou saiba,
- um outro sobre o risco de a inteligência artificial se transformar numa construção masculinista e
- um terceiro, uma versão feminina de Mein Kampf de Hitler (“Minha Luta é Nossa Luta”).
Até saberem que, como os quatro primeiros, se tratavam de um embuste, uma fraude monumental, produzidos com metodologias questionáveis, estatísticas implausíveis, alegações não sustentadas pelos dados e análises qualitativas motivadas puramente por ideologia.
Foram perpetrados sob pseudônimo por um professor de filosofia, um doutor em matemática e uma pesquisadora de textos medievais escrito por e sobre mulheres. Dispostos a provar, como provaram, que é possível publicar qualquer bobagem da moda na política em publicações científicas respeitáveis de estudos de gênero, desde que cheia de clichês ideológicos e envernizada por citações da literatura da área.
— Conforme progredíamos, começamos a perceber que mais ou menos qualquer coisa poderia funcionar, contanto que ficasse dentro da ortodoxia moral da área e demonstrasse um entendimento da literatura existente — escreveram na síntese do trabalho a que chamaram “Estudos de Ressentimento”, neste site, traduzida pelo biólogo geneticista Eli Vieira.
Peter Boghossian, Helen Pluckrose e James A. Lindsay produziram em um ano 20 artigos totalmente fraudulentos, mas dentro dos cânones exigidos pelo meio acadêmico, com ampla fundamentação da literatura da área e submissão ao escrutínio de seus pares, além dos clichês e do título rebuscado, claro.
Conseguiram publicar sete, um índice altíssimo em tão pouco tempo no meio, e andavam com outros sete em correção, na iminência de publicação, quando foram denunciados por um curioso de rede social (Real Peer Review) e expuseram em longa entrevista ao Wall Street Journal o propósito da empreitada.
Denunciar o ativismo predatório dentro das áreas de Ciências Sociais e Humanidades das universidades, menos preocupado em descobrir a verdade do que em denuncismo social, um tipo de curandeirismo que nega a ciência e a razão em nome de outras formas de saber não comprováveis.
Desqualifica como problemática a verdade produzida pelo método científico, a que dão nome de “construção social”, que não passaria de maquinação intencional ou inadvertida de “grupos poderosos para manter seu poder sobre os grupos marginalizados.” E “problematiza aspectos da cultura nos mínimos detalhes para tentar diagnosticar desequilíbrios de poder e opressão com raiz na identidade”. Ou seja, conforme escrevem:
“Para os acadêmicos dos estudos de ressentimento, a própria ciência e o método científico são profundamente problemáticos, se não flagrantemente racistas e sexistas, e devem ser refeitos para avançar a política identitária baseada em ressentimento acima da busca imparcial da verdade. Alega-se que esses saberes, dependendo do ramo de “teoria” invocado, pertencem às mulheres e às minorias raciais, culturais, religiosas e sexuais. Não apenas isso, são considerados inacessíveis a castas mais privilegiadas de pessoas, como homens brancos heterossexuais.”
Em linhas gerais, na prática, negam como “construções sociais” cristalizadas que
- haja diferenças cognitivas e psicológicas entre homens e mulheres,
- a medicina tradicional seja superior a práticas de cura tradicionais ou espirituais,
- as normas culturais do ocidente que deram às mulheres e aos LBGT direitos iguais sejam superiores a normas religiosas ou culturais não ocidentais e
- ser obeso não seja um problema de saúde limitante.
— O problema é epistemológico, político, ideológico e ético, está corrompendo profundamente o trabalho acadêmico nas ciências sociais e humanidades e se espalhando para a cultura. O cerne do problema é formalmente chamado de “construtivismo social”, uma ideia perigosa de que devemos, com bases morais, rejeitar em grande parte a crença de que o acesso à verdade objetiva existe (objetividade científica).
Esperavam que a denúncia desse às pessoas — “especialmente às que acreditam no liberalismo, no progresso, na modernidade, na investigação aberta e na justiça social — um motivo evidente para ver a maluquice identitária vindo da esquerda acadêmica e ativista e dizer ‘não, não vou me juntar a isso. Vocês não falam por mim’”.
Boghossian despertou para o problema em 2012, diante do aumento de agressividade em sala de aula na Portland State University, do Oregon, onde lecionou por mais de dez anos, dos 25 de sua carreira, filosofia, ética e pensamento crítico.
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De repente percebeu que estava ficando problemático apresentar argumento contrário a uma crença da moda, “que é o que se faz em filosofia: analisa duas opiniões contrastantes, pontos fracos e fortes, e tira a sua conclusão”. Porque é como se constrói raciocínio crítico e é papel da universidade oferecer, não só para combater preconceitos como para orientar devidamente políticas públicas com dados objetivos.
Opinião sem dados é preconceito, disse numa entrevista em que exemplificou: se você diz que a polícia americana para ou mata mais negros que brancos, é preciso ir lá e medir para ver se é verdade e encarar verdades inconvenientes.
Não teorizar a priori que é racismo estrutural ou resquício de dominação ancestral branca, acrescento. Se a polícia tem uma larga faixa de negros e certamente por isso negros também matam negros, como no Brasil, como fica a teoria?
Foi agredido de diferente formas quando tentou explicar o que acreditam as pessoas que defendem fechamento de fronteiras, que há diferenças físicas entre homens e mulheres e o problema do islamismo radical. Um aluno o acusou de racista e se retirou da sala quando ele tentou explicar o básico de que Islã não é raça, é religião, e que raça não se escolhe.
Num primeiro momento, ele começou a acreditar que a contaminação ideológica e a intimidação de estudantes, administradores e outros departamentos atingiam “um número razoável de pessoas”, mas “em um pequeno número de faculdades”.
Mais tarde, quando testou sua hipótese num artigo em uma revista de baixo prestígio que o pênis era um “conceito construído socialmente”, que chegam a “muita gente em um pequeno número de faculdades”. Até concluir, depois do escândalo, que eram comuns a “quase todas as pessoas nas universidades”.
Até o ponto em que foi demitido — ao invés de promovido — da Portland, no rastro da polêmica, depois de ouvir do reitor o disparate de que a função da universidade era fazer justiça racial. Não produzir conhecimento independente, como deve ser.
E tomar consciência de que o sistema todo estava infectado, como disse em entrevista recente à Gazeta do Povo, de Curitiba, onde previu que a doença que chegou ao estado atual de cancelamento e lacração, para não ouvir o outro lado, vai piorar ainda muito antes de melhorar.
— A cultura woke está piorando porque as universidades continuam a formar gente com essa bobagem, nesse sistema de crenças doentio e perigoso.
Vai melhorar um dia porque, segundo ele, “criamos uma cultura em que as pessoas fingem acreditar no que de fato não acreditam. Isto não é sustentável. Ninguém aguenta viver assim”.
> Publicado no Estado de Minas, em 2/11/2021
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