Na busca de culpados para nossas tragédias coletivas, como o 11 de Setembro de Bolsonaro, tendemos a recolher ao passado ou modificá-lo para explicar o presente
Culpado ideal, Jair Bolsonaro deu as evidências necessárias para a culpa coletiva determinar em retrospectiva a causa da pandemia
É tentador editar o passado para determinar o presente, na busca de um culpado para aliviar a culpa coletiva, um tipo de determinismo político que se alimenta do retrospecto.
Imaginar, por exemplo, que o Brasil seria outro se Lula não tivesse perdido para Collor aos 46 minutos do segundo tempo, por diferença pequena de votos, em 1989. Ou Gilmar Mendes não tivesse impedido sua posse na Casa Civil quando o governo Dilma estava indo para o buraco, em 2016.
Para ficar num exemplo mais fresco, se não tivesse sido afastado das urnas na última eleição pela caneta do juiz Sérgio Moro, como deixou escapar num ato falho o ministro do STF, Ricardo Lewandovski, ao votar por anular seus processos na Lava Jato.
Nas três hipóteses, Lula se elegeria, faria seu sucessor e implantaria sua dinastia por um novo tempo de paz e prosperidade. Porque é comum nesse tipo de pensamento apostar numa solução bem melhor do que o vivido, como válvula de escape de um presente que é sempre tedioso.
Poucos são os que apostam que poderia ser pior ou melhor de outra maneira. Eleito em 1989, faria um governo desastroso, não conseguiria eleger seu sucessor José Dirceu em 1994, mas teria sido conhecido bem antes e encurtado o tempo que o país gastou para conhecê-lo de verdade.
A melhor expressão que descobri para isso, a forte tentação humana de editar o passado para explicar o presente, é “determinismo retrospectivo“. Foi cunhada em O que se Passa pela Cabeça dos Cachorros (What The Dog Saw), do maravilhoso repórter da The New Yorker, Malcolm Gladwell, cuja maioria dos livros já resenhei aqui.
Tomar como certo o que teria acontecido se determinado fato marcante tivesse ocorrido de outra forma. Mais comum é que determinado fato ou toda uma tragédia poderiam ter sido evitados se alguém ou o destino houvessem interferido de outra forma.
Ele analisa o livro que é a principal tentativa de determinar em retrospecto que o 11 de Setembro poderia ter sido evitado: A Célula: Por dentro da trama do 11 de Setembro e por que FBI e CIA falharam em evitá-la (The Cell: Inside the 9/11 Plot, and Why the F.B.I. and C.I.A. Failed to Stop It), de John Miller, Michael Stone and Chris Mitchell.
O livro faz a autópsia de uma série de descobertas assustadoras da espionagem americana, de anos e até semanas antes do atentado que é o maior trauma americano. Para vaticinar que a agência ignorou fortes indicativos de que um atentado de grandes proporções, dentro do território americano, estava sendo preparado.
Entre eles, prisão de agentes ligados a Osama Bin Laden logo depois do ataque à embaixada americana em Nairóbi, em 1998, conversas gravadas de terroristas da Al Qaeda sobre atentados com aviões e de iminente ataque a pontos vitais do país.
Tratavam-se de indícios fortíssimos para a tentação retrospectiva de era impossível não determinar em retrospectiva que, se a CIA os tivesse levado a sério, a tragédia do World Trade Center poderia ter sido evitada.
O problema desse tipo de determinismo, como aponta Gladwell, é que se escolhe só uma alternativa, a que resultaria no desejado, no caso, evitar o ataque. Mas se despreza uma infinidade de pistas que poderia levar a soluções diferentes.
Supervalorizar evidências
A CIA não tinha apenas três a cinco indícios, mas milhares que recebia todos os dias por denúncia anônima, que é obrigada a investigar. Olhando em retrospectiva, bombas e aviões, ataques dentro do país e agentes de Osama Bin Laden, fazem todo o sentido.
Mas onde, quando, em que pontos? Que denúncias ofereciam mais consistência? Em que mundo era possível, sob qualquer hipótese, imaginar que cinco imigrantes empregados regulares de uma companhia aérea pilotariam cinco aviões da mesma companhia aérea em direção aos cinco pontos mais estratégicos dos EUA?
Outro problema é supervalorizar determinada evidência, porque ela se encaixa na edição da nova verdade que se quer estabelecer.
Mas o quanto é possível estabelecer que a prisão de um turco ligado a Osama Bin Laden é mais ou menos importante que a descoberta de que a American Airlines, dona dos aviões utilizados no atentado, vinha contratando muitos pilotos árabes, por exemplo?
Agora que um World Trade Center despenca por dia no Brasil, abatido por micro aviões invisíveis em todas as frentes, com 460 mil mortes na data em que escrevo, contemplo o BBB em torno da CPI da Covid no Senado e me pergunto se não estamos com a mesma tentação.
Ao trauma de ver a cara da morte todos os dias, como em nenhum momento de nossas vidas e de nossa história, é fortíssima a tentação de editar o passado para buscar uma explicação e um culpado, que nos alivie de uma culpa que não temos mas que nos sufoca como se tivéssemos.
— Onde foi que eu peguei? O que fiz para merecer isso?
Só pode ser o Jair Bolsonaro. É uma boa explicação por que ele vem catalizando todas as tentativas de editar o passado para culpá-lo, porque ele é merecidamente o culpado ostensivamente mais visível.
No caso dele, o determinismo fica tão mais tentador quanto mais verossímel, na medida em que ele não não oferece milhares de indícios, como os que enfrentou a CIA, mas alguns básicos. É o tipo de crime que teve vários num só suspeito.
Ele negou todo o tempo a dimensão da doença, os alertas científicos, a necessidade de prevenção e barrigou as soluções mais lógicas para combatê-la. A principal, a rejeição de seguidas ofertas de vacina da Pfeizer, foi para ele o que foram os agentes presos ligados a Bin Laden. Subestimados.
Bolsonaro é de fato a nossa CIA recalcitrante do nosso 11 de Setembro pandêmico, capitaneando um dos maiores de nossos escândalos políticos, mas reduzido a um número pequeno de fortes evidências, em quem depositamos todas as nossas certezas de leniência.
Mas, é justo? Até que ponto estamos sendo deterministas retrospectivos para achar um culpado? E, em função disso, até onde não estamos inflando os indícios para dar legitimidade a nosso determinismo aliviador?
Nessa tentativa, circularam com sucesso no noticiário cálculo de epidemiologistas de que pelo menos de 5 a 15 mil de vidas poderiam ter sido salvas se o presidente tivesse acatado a primeira proposta da Pfeizer, de agosto, que só se tornaria contrato seis meses depois.
O site The Intercept Brasil deu conta de um estudo da USP com o Butantan e a Fundação Getúlio Vargas, que estimava até 90 mil mortes pela leniência.
Especular o passado
É quase matemático concordar com o primeira e fantasioso acreditar na segunda, mas o cálculo teria que levar em conta a partir de que data elas seriam aplicadas, em que público e qual o grau de sua vulnerabilidade.
Qualquer dos cálculos não poderia levar em conta a data de 5 de dezembro, como se propagou que seria possível, porque a vacina só foi aprovada pela Anvisa dois meses depois, no início de fevereiro.
Para chegar aos 90 mil, seria necessário acreditar que o país já teria esse volume de vacinas da Pfeizer já disponíveis no início de dezembro, quando a primeira proposta falava em apenas 1,5 milhão. Três milhões até o final de março.
Também que todas as vacinas seriam aplicadas em pessoas com possiblidade 100% de morte. Como as primeiras vacinas seriam aplicadas em profissionais da saúde, mais jovens e mais resistentes, o percentual de mortes em 1,5 milhão de vacinas não poderia ser tão alto quanto se calculou.
Claro que apenas uma morte já é muito se pudesse ter sido evitada. Mas esse é o tipo de cálculo que, como o determinismo retrospectivo, não serve para nada, a não para ser como material de especulação filosófica. E quase zero para culpar legalmente o presidente da república por qualquer morte.
Por natureza, o determinismo escolhe o quer acreditar e dispensa variáveis que não confirmam a tese ilusória.
Todos os erros do governo Bolsonaro, que foram muitos e lhe outorgam merecidamente o papel simbólico de culpado em parte pelo tamanho da tragédia, não podem ser mensurados à luz das infinitas probabilidades que nos fazem mais vulneráveis ao vírus: demografia, condições econômicas, acesso a matéria prima de medicamentos, burocracia pública, ser terceiro mundo pobre e atrasado em quase tudo.
Tome-se o caso da Coronavac, do Butantã, una das variáveis que omitimos porque não se encaixa nos cálculos deterministas.
Ao contrário do governo federal, como se sabe, o governo de João Dória esteve atento a todas as oportunidades e prazos para entregar a vacina a tempo e no ritmo dos maiores países. Apesar disso, só foi conseguir posar para a primeira dose a 20 de janeiro, 45 dias após a primeira aplicação da Pfeizer na Inglaterra.
Quantas variáveis impediram que a produção chegasse ao braço do primeiro brasileiro no mesmo tempo da Inglaterra, apesar de todas as providências a contento? Onde, em que ponto, pode responsabilizar objetivamente Bolsonaro? Em que instante ele agiu objetivamente para que uma vacina não chegasse ao braço de um brasileiro, para a primeira foto que ele desejava tanto quanto Doria?
Enfim, podemos chutar e editar o passado para nosso alívio e especulação filosófica. Mas não é certo ou fácil usar isso como indicação de crime, como tenta fazer a CPI e seus senadores, que, como nós, têm alta tentação de determinismo retrospectivo.
Só alimenta muito a polêmica que é o IFA das comissões parlamentares, mas só ajuda a complicar.
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