Esse é o mas abrangente artigo brasileiro sobre o livro Manipulados e o método de manipulação de dados que impulsionou a revolução conservadora
Se você gosta de política, você precisa entender o escândalo da Cambridge Analytica e seu papel na revolução conservadora que impulsionou campanhas xenófobas de extrema direita a partir da eleição de Donald Trump, em 2016.
E o melhor caminho para isso é Manipulados – Como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque, de Brittany Kaiser, base de seu roteiro para a série Privacidade Hackeada, da Netflix.
É fundamental também para quem se interessa por marketing político, seu uso na internet e, por inevitável, o poder assustador de manipulação das redes sociais de criar desejo ou ódio para mudar eleitores e países.
E ainda é para quem quer uma história muito bem contada de personagens de carne e osso estupendos, como Alexander Nix e Steve Bannon, e jovens atrás de um laptop no comando dessa alavanca, como ela.
A autora de apenas 28 anos à época esteve dentro desse furacão, como diretora da empresa, de onde emergiu, depois de uma fuga para Tailândia, para ajudar a polícia na elucidação do escândalo e se firmar como uma das principais vozes na defesa da proteção da privacidade contra os abusos dos gigantes da internet.
Comecemos pelo início neste artigo que, advirto, é longo mas o mais abrangente a respeito no Brasil.
Modelo psicográfico de segmentação
Aos 40 anos em 2014, o britânico com jeito de lorde Alexander Nix tocava a mais bem sucedida empresa de pesquisa comportamental e comunicação estratégica do mundo, a SCL Group.
Tinha atuado em operações de guerra psicológica para militares britânicos e virado campanhas eleitorais para a vitória na maioria das cerca de 200 que influenciou com o uso brilhante de dados.
— Dados é o novo petróleo — dizia.
Virou campanhas nacionais perdidas em alguns países da África, da Ásia e da América do Sul, mudando o comportamento dos eleitores com inteligência de marketing sobre uma sofisticada modelagem de dados.
- Esteve por trás das mobilizações estudantis que derrubaram Suharto e elegeram Abdurrahman Wahid, na Indonésia, em 1999.
- Antecipou e tornou inócuas as denúncias de manipulação das eleições de Umaru Musa Yar´Adua, na Nigéria, em 2007.
- Criou um movimento estudantil que mobiizou todos os jovens de Trinidad Tobago contra o voto, contando que, no dia das eleições, os negros obedeceriam, mas não os indicanos, que acabaram ganhando as eleições de 2010.
- Escondeu totalmente o candidato à prefeitura de Bogotá, na Colômbia, e patrocinou depoimentos a favor dele, no cenário de 2011 em que todos os candidatos envolvidos em corrupção tinham alta rejeição.
- Criou um partido, um movimento estudantil e uma nova história para Uhuru Kenyatta, de forma a dissociá-lo do pai Jomo Kenyatta, o ditador altamente rejeitado do Quênia, em 2013.
Usava um modelo psicográfico criado por seu grupo de amigos dentro da universidade de Cambrigde, que segmentava os eleitores não pela estratificação convencional de sexo, idade, renda e posição geográfica, mas por seu grau de aceitação de determinados valores.
O quanto cada grupo de eleitores era aberto, precavido, indiferente, interessado ou reativo, segundo uma tabela de modelagem de nome OCEAN (Open, Conscious, Extrovert, Affable, Neurotic).
Para isso, extraía os dados pessoais de milhões de usuários do Facebook, não pelo que o Facebook continha, mas pelo que extraía dele com o uso de aplicativos oferecidos em troca de uma pesquisa de comportamento.
Para ter acesso a um app divertido como o Cruz Crew, o usuário respondia a uma pesquisa em que entregava sem perceber seus dados comportamentais (quieto, agitado, agressivo, compenetrado, reativo, etc). E iria compor os grupos aos quais eram destinadas mensagens sob medida, para provocar desejo ou ódio.
Numa campanha sobre o direito ao uso de armas para conservadores do grupo “fechado e empático”, por exemplo, podia-se ver a foto de um homem e um menino caçando patos ao pôr do sol, sob a frase: “De pai para filho, desde o nascimento de nossa nação”.
Ou para o eleitor indeciso “extrovertido e não empático”, uma mulher independente, que tem controle da sua vida. Numa expressão agressiva, a frase: “Não questione o meu direito de ter uma arma e não questionarei sua estupidez em não ter uma”.
Estava no auge do sucesso quando foi chamado a participar da campanha do Brexit, pela saída da Inglaterra da União Europeia, cujo diretor, Dominic Cummings, chegou a dizer que:
— Se Victoria Woodcock, a responsável pelo software da campanha, tivesse sido atropelada por um ônibus, o Reino Unido teria continuado na União Europeia.
Foi por aí, por volta de 2014, que seu sucesso atravessou o Atlântico e começou a fazer sucesso em várias campanhas estaduais americanas. Até conseguir resultados impressionantes nas primárias nacionais à Presidência da República para o altamente rejeitado Ted Cruz.
Cambridge Analytica e campanha de Trump
E cair no colo de Steve Bannon, um arrivista fracassado em investimentos financeiros e no showbusiness, que vinha ganhando respeito com o site de extrema direita Breitbart News e já se notabilizava como estrategista da campanha de Donald Trump.
Que até então era visto como um bufão, cuja campanha para a presidência até então era considerada uma piada para o público externo e uma estratégia de marketing para o público interno. Trump pretendia utilizá-la como trampolim para o lançamento de sua própria rede de comunicação.
A proximidade de sucesso com o Partido Republicano que atraiu Bannon também arrastou um mecenas do partido, Robert Mercer. Cientista de dados que criou os primeiros algoritmos de inteligência artificial da IBM, tinha virado barão bilionário dos fundos de hedge utilizando modelos preditivos no mercado de ações.
Juntos e mais a poderosa filha gestora de Mercer, Rebekah, criaram a Cambridge Analytica, a que se atribui a vitória do Brexit, a eleição de Trump, a alavanca da revolução conservadora no mundo.
Mas também o maior escândalo de manipulação de dados de que se tem notícia.
Contaram com a expertise de Alexander Nix e o dinheiro dos Mercer, mas sobretudo com a genialidade de Bannon.
Que descobrira nos jogos eletrônicos a força das comunidades identitárias, como que pessoas são capazes de matar ou morrer para defender seu grupo e destroçar o adversário.
Esse estímulo quase matemático de fidelidade canina e de ódio visceral foi o motor da campanha presidencial de Trump, engrenado sobre uma micro-segmetação comportamental de 87 milhões de americanos minerados do Facebook. Ou mais de 200 milhões com seus reflexos nos amigos dos amigos, com a mensagem certa para o grupo certo, na hora certa.
Mais que promover as mensagens que alavancassem seus candidatos, operavam também para denegrir os adversários e desestimular os votos dos resistentes, de que se sabiam contrários, como se fizera com os negros em Trinidad Tobago.
O modelo que se expandiria para o mundo e elegeria candidatos mais ou menos extremos do nacionalismo xenófobo, como Jair Bolsonaro no Brasil, também consolidou a ideia de máquina ódio nas campanhas eleitorais e elegeria Steve Bannon o novo e maior ideólogo do mal da revolução conservadora.
O Facebook chegou a colocar funcionários em tempo integral dentro da campanha, de forma a otimizar seus recursos tecnológicos de marketing digital. Seu interesse, como quase tudo nos EUA, era arrecadatório, mas fez a diferença principal na vitória republicana.
O mesmo serviço foi oferecido sem sucesso à campanha adversária, da democrata Hillary Clinton, como ocorreu no Brasil em que Geraldo Alkimin recusou oferta semelhante de empresas de manipulação através do WhatsApp, contratadas por empresários que patrocinaram a campanha de Bolsonaro.
Num modelo de tentativa e erro e testes duplos e triplos de milhares de versões de mensagens para os grupos micro-segmentados, a campanha de Trump chegou a fazer quase 7 milhões de anúncios, contra apenas 65 mil de Clinton.
Na linha de destruir o adversário, no ponto mais quente e mais baixo da campanha, a turma de Nix/Bannon publicou anúncios detratores sobre tráfico de influência de Hillary em favor do marido Bill em negócios internacionais, quando ela era chefe do Departamento de Estado de Obama.
Mensagens sobre corrupção de Clinton, em palestras conquistadas graças às relações internacionais da mulher, eram dirigidas a americanos conservadores brancos.
Outras, sobre o passado mulherengo do ex-presidente que quase perdeu o cargo por “relações impróprias” com uma estagiária dentro do Salão Oval, eram dirigidas a mulheres casadas, também conservadoras.
Numa sofisticação, compravam termos de pesquisa no Google, de forma que, no caso de pesquisa pelos nomes de Bill ou de Hillary Clinton, o usuário era remetido prioritariamente para em matérias pré-elaboradas de escândalos relacionados aos dois.
Na linha de desestimular o voto de públicos sabidamente contrários, que dificilmente votariam em Trump, dirigiam a maior parte das mensagens detratoras aos estados do chamado Cinturão da Ferrugem – Michigan, Minnesota, Ohio, Iowa, Pensilvânia e Wisconsin.
Região manufatureira, reduto tradicional dos democratas, como o ABC em relação ao PT aqui, foi onde a campanha micro-segmentada operou a decepção da população com a leniência com que os progressistas trataram sua debacle econômica em espiral.
Com base no que a Cambridge Analytica apurou, Donald Trump montou ali seu discurso nacionalista e xenófobo de recuperação da indústria e dos empregos, destruídos desde a decadência da indústria automobilística, nos anos 80, com a compassividade dos Democratas.
Em cima dessa percepção e de outra ligada a essa, a de que a imigração era o demônio responsável por retirar os empregos dos americanos, lançou sua campanha com o fetiche simbólico de construir um muro na fronteira com o México, porta de entrada da maioria dos imigrantes ilegais.
Nas vésperas de descer as escadarias da Trump Tower, no coração de Nova York, e anunciar aos jornalistas sua candidatura e o muro, numa manhã de junho de 2015, sua assessoria havia recebido na mesma Trump Tower “os ingleses”.
Era o nome que ele dava aos jovens de que ouvira falar por Bannon, chefiados por Alexander Nix, que trazia a tiracolo Brittany Kaiser.
Uma democrata no fosso republicano
Aqui entra a jovem de apenas 28 anos à época, já importante dentro da Cambridge Analytica agora e depois fundamental para ajudar a imprensa e a polícia a decifrar o escândalo colossal que fraudara a maior eleição do mundo com implicações internacionais.
Ela também contribuiu para ajudar a elucidar as denúncias de envolvimento da Rússia na campanha, derivadas de relações comerciais da Cambridge com parceiros no país.
Brittany entrou na SCL em 2014 com uma tremenda dor de consciência, para ajudar a sustentar a família de pai com câncer no cérebro e mãe desempregada da Enron.
Apesar da pouca idade, tinha tido uma história de militante de alguma importância pelo Partido Democrata, passagem por universidades na Inglaterra, em Hong Kong e nos Estados Unidos, além de um maratona internacional como lobista da Anistia Internacional.
Aos 15 anos, em 2001, saíra de sua pequena Lincoln Park, perto de Chicago, numa excursão estudantil ao comício do candidato democrata Howard Dean, a partir do que virou sua voluntária de campanha, enviando emails para leitores indecisos a partir do seu dormitório.
O 11 de Setembro, que provocara uma forte reação conservadora em que cavalgava a Fox News do ultraconservador Roger Ailes, teve nela o efeito contrário. O de uma radicalização liberal, no sentido americano de esquerda progressista afinada com o Partido Democrata.
Foi nessa condição que foi convidada a participar do programa de liderança juvenil Lead América e, aos 18 anos, em 2004, se intrometeu se intrometeu nos bastidores de um comício do candidato a senador Barack Obama.
— Ele era alto, bonito e, embora já tivesse passado dos 30, parecia dez anos mais novo. Emanava tanta ternura e esperança que apenas estar perto dele me fez sentir que tudo ia ficar bem.
Voluntária de sua campanha ao Senado, em 2008, já dentro da campanha dele à presidência, foi quem criou e passou a administrar a página do candidato no Facebook.
Já tinha algumas milhares de horas de voo em 2014, aos 28 anos, falando e se reunindo em nome do Anistia Internacional com embaixadores e príncipes ao redor do mundo, quando caiu nas graças de Nix, num jantar em Londres.
Sua participação nas campanhas foi presente, mas marginal, porque crescera dentro da empresa como diretora de vendas, alguém que faz a apresentação matadora dos serviços oferecidos a um potencial cliente.
Ela aprendeu fascinada o método do novo patrão de convencer clientes ou plateias com um powerpoint sobre as possibilidades milagrosas do uso de dados para manipular e mudar pessoas em campanhas eleitorais.
Sua proximidade e sua dor de consciência de estar ajudando a eleger o que para ela seria monstros da Direita, com os quais nunca teve qualquer afinidade anterior, foram fundamentais para oferecer os subsídios às denúncias que arrastou Alexander para os tribunais ingleses e depois, junto com Bannon, americanos.
E escrever o livro Manipulados, a maior radiografia das bases de construção do escândalo onde estão todas as informações deste artigo, e o roteiro de Privacidade Hackeada, o documentário da Netflix com base no livro que causou estupor mundial pelas revelações.
Por essa época, ela já estava na Tailândia, para onde se refugiara temendo prisão. Suas chances de se salvar seria uma delação premiada que poderia lhe causar maiores problemas, na medida em que tinha um contrato de confidencialidade com a Cambridge.
Com base porém num dispositivo constitucional que anulava a confidencialidade de informantes em caso de denúncia de interesse público, ela voltou aos Estados Unidos, delatou, ficou livre e passou a se dedicar a uma cruzada pela posse intransferível do uso de dados pelo cidadão.
Seu livro, seu documentário e sua luta foram e têm sido determinantes para ajudar as autoridades a enquadrar marqueteiros e sobretudo as plataformas das redes sociais a relações mais civilizadas e respeitosas com seus usuários.
Chegou a defender em entrevistas que as pessoas pudessem, além do controle de seus dados, receber dividendos dessa indústria por seu uso.
Em 2019, foi nomeada para o conselho consultivo da Punhouse, uma empresa de tecnologia de localização de usuários de smartphones. E, em 2020, como Julian Assange, o ativista caçado pelos Estados Unidos por vazar dados de segurança nacional, começou a divulgar links de documentos secretos da Cambrige.
Revelava outras incursões perigosas de manipulação de eleições em outros países, como Quênia, Malásia e Brasil.
Onde, em meio ao furacão que levou Nix e Bannon aos tribunais, em 2018, Jair Bolsonaro cavalgava uma campanha com métodos semelhantes.
Os Bolsonaros haviam se aproximado de Bannon. Sem a mesma sofisticação da micro-segmentação, utilizaram basicamente o WhatsApp em disparos em massa, sob o comando do Alexander Nix tupiniquim, Carlos Bolsonaro, e o patrocínio ilegal de alguns Mercers nacionais, como Luciano Hang.
Paulo Prado diz
No caso específico aqui do Brasil, nada disso foi provado. O que põe em xeque essa matéria.