Mais redondo personagem da nossa dramaturgia como paradigma do maquiavelismo nacional, foi a única coisa que não envelheceu em O Bem Amado
A única coisa que não envelheceu em O Bem Amado, disponível na Globoplay, é Odorico Paraguassu.
A primeira novela brasileira em cores, de 1973, é de um amadorismo gritante nos cenários acanhados (compensa nas cenas externas), na direção colegial, nos diálogos didatizados e nos conflitos mal resolvidos.
Em muitas cenas, a impressão é que o diretor Regis Cardoso usava só uma câmera e esquecia alguém fora do quadro. Um grupo discute e, só lá pelas tantas, alguém esquecido entra na cena para se intrometer na conversa.
Na maioria dos diálogos, os personagens repetem o que estão fazendo ou fizeram, tanto para o interlocutor quanto para o telespectador que já sabe do que se trata:
- “O que você está fazendo aqui na praia, nessa posição maluca” — pergunta Telma (Sandra Brea) para o doutor Leão (Jardel Filho), o médico maluco brigado com o mundo.
- “Estou preparando as minhas asas, doutor Odorico, para cumprir a minha promessa com Iemanjá” — diz Zelão (Milton Gonçalves), antes de repetir o que todo mundo já sabe: “Seu padre disse que eu tenho que fazer uma armação mais forte…”
Conflitos paralelos fortes, como o do playboy que mete fogo no bêbado Nezinho do Jegue, só “por curtição”, ou da exploração dos pescadores por um sacripanta, começam com forte potencial de drama e se diluem em soluções sem culpa ou punição.
O amadorismo de um modelo ainda engatinhando passava longe porém das cenas, todas elas, em que atuava o prefeito que queria inaugurar o cemitério a todo custo, numa cidade em que ninguém morre, se utilizando de todos os meios que justificam seus fins.
Deriva certamente de que o teatrólogo Dias Gomes conhecia a fundo o seu personagem, criado para uma peça de teatro, e as circunstâncias da política miúda de interior que presenciou menino na casa dos pais e avós, na Bahia.
Manejava nele, com gosto, suas inquietações sobre o ridículo e ao mesmo tempo o perigo da manipulação do poder, temporal ou eterno.
Que desenvolvera em três grandes peças sobre a opressão de padres e de políticos: O Pagador de Promessas, O Santo Inquérito, O Berço do Herói (que redundou em Roque Santeiro).
Ele conseguiu condensar em Odorico toda a astúcia desavergonhada que não nega seu nome, numa linhagem que vem de Maquiavel e perpassa todos os políticos que conhecemos.
Transformou-o quase numa enciclopédia de maquiavelismo, no paradigma da atividade política, com respostas de cinismo dissimulatório prático para quase tudo em política. E no sinônimo do que se entende por político no país.
Veja trechos de dois capítulos em que sabota a chegada de vacinas na cidade para inaugurar seu cemitério:
Sua morte no último capítulo (não há quem não saiba desse spoiler) foi noticiada pelo vetusto Jornal do Brasil no meio do noticiário político, como um fato da realidade, sem fazer referência à novela.
Coerência dramática
No início dos anos 80, quando o seriado derivado da novela era uma paixão nacional, ele compareceu a um Roda Viva emulado com jornalistas e celebridades reais, aos quais deu respostas memoráveis que não parecia terem sido ensaiadas.
Há alguns anos, a CBN publica um podcast em que mistura falas do governante de turno com as Odorico, retiradas em criteriosa pesquisa dos arquivos do Banco de Memória da Globo. É impressionante como que, governo após governo, desde sempre, nossos governantes repetem tudo o que ele disse.
Muito da consistência do personagem, que acabou icônico e o mais redondo de nossa literatura dramática, se deve à coerência dramática que Dias Gomes conseguiu imprimir do primeiro ao último capítulo, a jornada do herói que persegue obcecado seu destino, tenta diversas vezes até a a encruzilhada final.
Algo que que todas as novelas perderam desde que passaram a alterar a personalidade da personagem para atender a demandas de ibope e da volubilidade da opinião pública.
Se tivesse sido escrita duas décadas depois, quando a marca autoral perdeu valor para um conjunto de autores funcionais, o muito amado Odorico certamente não teria morrido ao final.
Sua redondice, como diria Odorico, se deve também á riqueza dos diálogos de quem aprendeu a escrever curto e preciso no teatro. Mas quase todo o resto ao impressionante desempenho de Paulo Gracindo.
Ele dispara o linguajar de falso culto bacharelesco, encharcado de neologismos baratos, como uma segunda natureza, a naturalidade de um grande ator shakesperiano falando como se não fosse verso.
- Muito emboramente eu a julgue uma madama apetrechada de todos os predicativos…
- Isso é potoca dessa gazeta militante e marronzista.
- Vamos deixar de lado os entretantos e vamos direto aos finalmentes.
Exibia tanta convicção, trejeitos incorporados como uma segunda personalidade (reparem como enrola e acende um cigarro enquanto conversa) e nuances de gestos e falas, que parecia estar dirigindo a si mesmo e resolvendo em parte o problema da precariedade da direção.
Sua escolha para o papel foi outra das convicções de Dias para o personagem.
Ele conta em sua autobiografia (Apenas um Subversivo) que a Globo queria lhe impor o então galã Sérgio Cardoso. Achava temerável colocar em protagonista de tal dimensão um ator das novelas da rádio Nacional, sem qualquer experiência de vídeo, que era o caso de Gracindo.
Dias bateu pé e chegou a ser ofensivo numa conversa com Cardoso, quando teve a certeza de que o galã não tinha qualquer afinidade com suas pretensões.
Bancou o velho ator de rádio, inexperiente de TV, como se estivesse certo, certíssimo, otimamente certo, de que estava diante de um patrimônio.
Apenasmente.
O segundo maior personagem
Se Odorico é de longe o personagem mais redondo da dramaturgia televisiva nacional, o segundo é também de O Bem Amado: Zeca Diabo.
Tão estupendo quanto Odorico, só não pode encabeçar a galeria porque não tinha o espaço óbvio do protagonista. Difícil saber, entre tantas nuances que modulava voz e gestos como se entoasse uma ópera, qual seria melhor em tempos iguais de atuação.
Sintomático que tenha crescido dentro da novela e se transformado no antagonista que deu maior sentido à história, por um acidente que aproveitou com garra de ator também shakespeareano.
Aos 40 anos, Lima Duarte tinha ido para a Globo tentar repetir o sucesso de Beto Rockfeller, a mais revolucionária novela até então, que dirigira sob texto de Lauro César Muniz, na TV Tupi.
Mas a experimental O Bofe, de 1972, fora um fracasso retumbante e ele estava às vésperas de deixar a emissora, quando foi convencido por Dias Gomes a atuar como o cangaceiro sangrento que matara dezenas e se convertia num beato arrependido assim que chegasse a Sucupira.
Vinha a convite do prefeito, como uma das manobras maquiavélicas para inaugurar o cemitério, numa participação de apenas cinco capítulos, que começou no 50.
Mas quando o homem mau de rosto vincado por todas as maldades do mundo entrou pela primeira vez no único bar aberto na cidade toda fechada de medo e pediu “uma cachacinha, faz o favor”, com voz de criança, a novela brasileira nunca mais foi a mesma.
Uma chuva de cartas à Globo e uma polêmica nacional de sociologia barata que o colocava como vítima do sistema, fez dele um fenômeno cultural e o principal antagonista de Odorico, até a cena do clímax final, no capítulo 178. Seguramente, umas das melhores de novela, em todos os tempos.
Ali, redimiu o diretor periclitante e reafirmou a criatividade do escritor.
Dias Gomes fizera do desvio do seu ideia original, que colocava o cangaceiro arrependido como mais uma manobra criminosa de Odorico, como alavanca para expandir o seu projeto dramático no rumo da transcendência.
A última cena de Zeca, em que decide voltar para o cangaço ao fim de todas as suas ilusões para se transformar num homem bom, é antológica do ator e do acerto do autor.
É a maior prova de sua genialidade para produzir heróis inesquecíveis, que apaga os pecadilhos produzidos por sua dificuldade de escrever tramas paralelas, que perderam importância no tempo diante de gigantes como Odorico e Zeca.
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