De onde veio, como se estruturou e quais os reflexos da máquina de ódio que usou as redes sociais para eleger Bolsonaro e rachar o país.
Se você quer entender como se formou a chamada máquina do ódio alimentada pelas redes sociais, que agravou a polarização política no país e elegeu Jair Bolsonaro, você precisa ler A Máquina do Ódio, de Patrícia Campos Mello.
O livro enxuto de pouco mais de 200 páginas é uma grande introdução à aula do que ela é capaz, como se estruturou, sua relação com as outras máquinas de ódio criadas em outros países, sobretudo nos EUA de Donald Trump, e os riscos reais que elas representam para a democracia.
Patrícia conheceu o inferno nos dias seguintes em que publicou na Folha de S. Paulo a primeira e mais contundente denúncia sobre o disparo ilegal em massa de mensagens pelo WhatsApp na campanha de Jair Bolsonaro, entre o primeiro e o segundo turnos das eleições presidenciais de 2018.
O capitão cavalgava a campanha digital de longe a mais bem sucedida entre seu concorrentes, de promoção pessoal, manipulação de fatos e destruição de reputações. Em pouco tempo, tinha dez vezes mais seguidores e centenas de vezes mais visualizações do que a do segundo colocado, o petista Fernando Haddad, no Twitter, no Facebook e no Youtube.
Seu exército de milhares de grupos criados no WhatsApp, disparados de um bunker de administradores de contas ilegais, patrocinados por empresas e multiplicados voluntariamente por anônimos em todo o país, fizeram um massacre sem precedentes. Uma boa comparação é a blitzkrieg hitlerista que passava tratorando os exércitos adversários.
Vítima preferencial nos dias que se seguiram à matéria, Patrícia era chamada de prostituta, vagabunda, desonesta e tudo o que mais fosse possível por um movimento orquestrado nacional e mundialmente, puxado por influenciadores no auge de seu prestígio nesse submundo, como o ex-ator pornô, eleito deputado federal, Alexandre Frota.
No primeiro vídeo de que tomou conhecimento, apresentado por seu filho de oito anos e viralizado mundialmente algumas horas depois da reportagem, o título dizia Vagabunda Sem Vergonha.
No ápice das agressões após uma semana de uma batalha feroz, ela publicou um dos posts que mais lhe doeram e denotavam a dimensão do nível de terrorismo e maldade dos detratores alimentados por essa máquina.
— Todo o castigo para você é pouco!!! Uma pena que seus filhos pagarão pelos seus erros, pois serão lembrados diariamente que a mamãezinha deles não passa de uma prostituta de baixo calão.
Ela respondeu:
— Marcelo, com todo respeito que você não teve por mim, vou discordar. Ao contrário de você, torço muito para que nem eu nem nenhuma outra mãe seja alvo desse tipo de campanha difamatória.
No ponto mais baixo, ela foi acusada publicamente de trocar notícia por sexo, inicialmente por um de seus entrevistados, ex-funcionário demitido por uma das empresas de disparo em massa. Depois por um parlamentar, nada menos que o filho do presidente da República, o deputado federal Eduardo Bolsonaro.
— Eu não duvido que a sra. Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o sr. Hans, em troca de informações para tentar prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro.
E, por fim, pelo próprio supremo mandatário, numa insinuação grosseira de que ela teria “dado o furo”.
Sob um fogo cerrado que parecia emanar da Presidência da República, a jornalista que já havia coberto guerras em algumas partes do mundo se sentia pela primeira vez amedrontada:
— Cobri o conflito na Líbia em Sirte, no front contra o Estado Islâmico. Fiz coberturas da guerra na Síria, no Iraque e no Afeganistão. Nunca tive guarda-costas. Estava em São Paulo, e precisava de segurança.
Origens e segmentação
A partir de sua experiência dolorosa, ela investiga as origens da montagem dessa máquina de ódio. Como ela disseminou seus métodos em outros países, deturpou resultados de eleições e deu poderes discricionários a populistas que resultaram em desmonte de instituições e perseguições a jornalistas, como revela outro pequeno grande livro: Os Engenheiros do Caos.
Fez menos, embora graves, estragos em países de instituições mais fortes, como Estados Unidos, Itália e França, onde a ascensão de um populismo nos moldes brasileiros não afetou a ordem democrática. Mas foi desastrosa na Hungria, na Turquia, na Índia, Filipinas, Venezuela e Nicarágua, onde o uso eficiente da destruição de reputações deu sustentação para atrofiar o judiciário, perseguir jornalistas, sufocar jornais e revistas.
Sua boa premissa é a de que, nesse modelo de autoritarismo, os populistas não precisam dar golpes de estado nem censurar a internet. Basta criar um inimigo comum e alimentar milhares de fanáticos nas redes sociais com “a versão dos fatos que se quer emplacar, para que ela se torne verdade e abafe as outras versões”.
— Os americanos chamam isso de firehosing, derivado de fire hose, mangueira de incêndio. Trata-se da disseminação de uma informação, que pode ser mentirosa, em um fluxo constante, repetitivo, rápido e em larga escala.
“Fatos alternativos”, como admitiu e defendeu o porta-voz de Trump, Sean Spicer, citado por Patrícia, numa degradação da máxima famosa do senador Daniel Patrock Moynihan: “todo mundo tem direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”.
Temperados no caso com uma obsessão fora de hora contra o comunismo e uma boa dose de misoginia, sobretudo no caso das mulheres, em que o argumento desce à desqualificação de atributos físicos: gorda, porca, sovaco cabeludo.
A origem é a Cambridge Analytica, empresa montada pelo arrivista Steve Banon, uma dupla de milionários americanos mecenas da Direita — ao estilo do nosso Luciano Hang — e Alexandre Nix. Esse pequeno gênio inglês de uma empresa de marketing político, SCL, vinha ganhando eleições no mundo todo com métodos agressivos de desconstrução de adversários com segmentação inteligente de públicos.
O modelo utilizava dados pessoais dos milhões de usuários do Facebook para fazer mensagens dirigidas a públicos selecionados com sofisticado nível de segmentação, o chamado micro direcionamento. Determinante para a vitória inesperada de Donald Trump, em 2016, chegou a formatar em grupos de micro interesses os dados de 240 milhões de usuários nos EUA, no escândalo que ameaçou levar o dono do Facebook para a cadeia.
A rede social vendia os dados para qualquer desenvolvedor de aplicativos e chegava a colocar funcionários dentro da campanha de Donald Trump, de modo a auxiliar na segmentação e no disparo de mensagens. A campanha de Trump chegou a disparar 5,9 milhões de posts, micro selecionados, contra 65 mil da adversária democrata Hillary Clinton, que, sem entender a dimensão do método, rejeitou os serviços do Facebook.
A micro seleção levava em conta não os dados convencionais de faixa etária, distribuição geográfica, poder de compra ou preferências sexuais e religiosas. Mas a uma a uma modelagem psicográfica diabólica, criada dentro da universidade de Cambridge, incubadora da empresa, que separava os eleitores por afinidades sentimentais e potencial de preconceito, medo, abertura ou resistência a mudanças.
Eles usavam mensagens e vídeos diferentes para falar de direito a armas, por exemplo, evocando medo se queriam atingir velhos conservadores ou independência, se queriam falar com mulheres mais liberais. Também atuavam para desestimular a presença nas urnas de eleitores de Hillary, com mensagens adaptadas a diferentes públicos sensíveis às estripulias sexuais ou financeiras de seu marido, o ex-presidente Bill.
Steve Banon foi o gênio intelectual por trás da empreitada. Ele casou sua percepção da onda conservadora que vinha ajudando a alimentar em seu site (Breitbart.com) com o potencial de irmandade fiel que percebeu nas comunidades de jogos eletrônicos e a genialidade técnica de Alexandre Nix para a segmentação.
E Carlos Bolsonaro, o filho presidencial que tocou a campanha digital do pai, foi o visionário que importou a novidade para o Brasil, como reconhece Patrícia. Foi ele que identificou influenciadores e tocou a máquina que introduziu o pai no modelo de lives, conversa direta com o eleitor, por fora dos meios tradicionais de comunicação, e fez disparos criminosos em massa utilizando grupos, perfis e CPFs falsos.
(Numa das investigações posteriores da Polícia Federal, a mando do ministro do STF, Alexandre de Moraes, foram apreendidas caixas do tamanho de enquadrados de cerveja cheias de chips de celular comprados com CPFs falsos ou roubados. A campanha de Haddad, diga-se, se utilizou de disparos em massa, mas não conhecia o método e suas dimensões.)
Os erros da imprensa
O livro de Patrícia não aprofunda nos detalhes do engenho da Cambridge, bem melhor tratado nos livros Os Engenheiros do Caos (Giuliano Da Empoli), que ela cita, e Manipulados, de uma ex-funcionária da Cambridge, Brittany Kaiser, que ainda não havia saído, quando ela colocou o ponto na última página, em junho de 2020.
Com isso, ela não trata das consequências do processo tocado por Alexandre de Moraes, que resultou em prisões de bolsonaristas por trás da máquina de Carlos, e reduziu a escalada de violência política nas redes sociais. Massacrado de início por ser inconstitucional, na medida em que a vítima (o STF) apura, julga e prende, acabou reconhecido como a maior das mais recentes alavancas de proteção das conquistas democráticas do país.
Por sua formação e seus interesses, seu livro acaba mais centrado no papel da imprensa, nas dificuldades de jornalistas no mundo todo diante dessa nova ordem e nos riscos para a liberdade de expressão. Tem bons relatos de experiências de vários jornalistas perseguidos e refugiados, em diversas partes do mundo, e mobilizações em defesa da profissão e da imprensa, também em várias partes.
Num encontro na Casa Branca com os cinco jornalistas premiados em 2019 com o Liberdade de Imprensa do Comitê de Proteção aos Jornalistas, o vice-presidente Mike Pence quis saber de Patrícia se o presidente do Brasil não condenava os ataques. Ela respondeu que, ao contrário, estimulava.
Seu livro é um tanto quanto precário, por limitação ou falta de intenção, no diagnóstico do que levou o eleitorado a ter tanto ódio da imprensa e dos jornalistas. Resume na batida questão das limitações da imparcialidade e da falsa equivalência do preguiçoso “ouvir os dois lados”.
Atribui a décadas de políticas identitárias da esquerda o mal estar de um eleitor que se sente mal ouvido nos seus problemas cotidianos.
— “Os políticos acham que seu patriotismo é de mau gosto, suas preocupações sobre a imigração são paroquiais, suas visões sobre crime são extremas e seu apego à estabilidade no emprego é inconveniente”, disse em 2016 a então primeira-ministra britânica, Theresa May.
Mas Patrícia não coloca os jornalistas na questão e nem avança pouco no que eu defendo como principal causa. A relativização moral de uma classe liberal, quase licenciosa, que passou a sobrepor como prioritários valores que a maioria da população abomina: cotas raciais, questões identitárias, direitos humanos, direito ao aborto, preferências sexuais.
A subversão de valores em desrespeito ao que a maioria quer acreditar pode ter alimentado mais o ódio do que chamam de onda conservadora e das novas técnicas de manipulação da comunicação por redes sociais.
>>> Leia as resenhas de Os Engenheiros do Caos e Manipulados.
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