Uma boa referência para você saber qual o livro da sua vida é pensar no primeiro que lhe vem à mente quando alguém te pergunta qual é.
Eu sei qual o livro da minha vida, que me marcou profundamente, porque é de longe o primeiro que me ocorre quando sou desafiado por alguém com esse tipo de pergunta.
Na última semana, amigos do Facebook me provocaram a revelar os sete livros que mais me marcaram e, de novo, ele estava na cabeça.
Que é Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez.
Cada um tem sua razão superficial ou profunda, pessoal ou profissional, para escolher seu livro de cabeceira.
E quase sempre a melhor explicação que temos é sempre a história, seus personagens e a profunda reflexão, inflexão, que nos casou.
Uma grande história um ou uns grandes personagens com quem a gente torce, contra ou a favor, um aprendizado de mudança de vida.
No meu caso, não é só, e vou explicar por quê.
Cem Anos de Solidão é uma belíssima história da saga de uma família de vários personagens extraordinários num povoado do fim do mundo, que é também ele, povoado, um grande personagem, que nasce, cresce e morre.
O primeiro José Arcádio desbrava com sua jovem Úrsula Iguarán um pedaço de chão desconhecido no fim de mundo da Colômbia e vão gerar os dois filhos que vão gerar os outros tantos.
Outro José Arcádio e Aureliano, que vão procriar uma enfiada de Arcádios e Aurelianos, que por sua vez vão entrar e sair de forma trágica ou sublime junto com o crescimento e as desilusões da idade e da cidade.
Para mim, Garcia Marquez pretendeu encapsular, abranger, a formação do mundo, a criação e formação de um mundo particular, de um microcosmo que traduzisse o mundo como ele é, aquele seu mundo, o mundo meio maluco, atrasado e mágico da América Latina.
Ganhou a fama merecida e o Nobel da Literatura por, entre outros motivos, traduzir e ao mesmo tempo recriar a América Latina, com seu atraso e suas fantasias, como se a a fé, as crenças e a fatalidade fossem mais importantes que a realidade.
Daí a invenção do realismo mágico, que não deixou sucessores.
Acho fascinante que a primeira visita de estrangeiros àquele fim de mundo sejam ciganos que trazem os grandes inventos do mundo novo, como a bússola e a luneta, como se estivéssemos no início das navegações, dos grandes descobrimentos, da chega da ciência àquele mundo atrasado. A história começa…
Mas a minha razão principal de amá-lo, como eu disse, não é a história e nem a a galeria de topos fantásticos e nem toda essa reflexão que o torna grandioso.
Mas, sim, o que ele me ensinou na arte de escrever, na arte da narrativa, da escrita criativa.
Como?
Provocado pelos amigos do Facebook a responder quais os sete livros que me marcaram, Cem Anos de Solidão novamente no topo da lista, passei boa parte da semana tentando entender porque ele me impactou tanto.
Por que? O que ele tem? Que recursos, maquinarias ou porções do diabo Garcia Marquez utilizou para me fazer refém de seu livro?
Fui descobrir que cada um dos sete livros que citei me ensinaram uma coisa diferente na arte de contar história, mas Cem Anos de Solidão foi o que reuniu a maior parte, o essencial, do que entendo por escrever bem.
Mas o quê? Quando? Onde? O que ele tem de tão especial que me ensinou tanto? Que recursos são esses que fazem com que um livro me prenda da primeira à última linha. E por que Cem Anos de Solidão, mais que outros?
Bom, eu cheguei a cinco coisas, cinco recursos, que me encantaram, me prenderam e ao mesmo tempo me ensinaram a saber como se faz para escrever um grande livro que prenda o leitor da primeira à última linha.
As cinco técnicas
1.
O primeiro é sem dúvida a narração poética. O texto de Garcia Marquez desliza sem pedregulhos, cheio de construções elegantes e até quase musicais em todas as páginas, do início ao fim.
Me lembra a fluidez quase musical do rio que escorre em águas cristalinas logo na primeira página:
- Macondo era então um povoado de algumas casas de barro e taquara às margens de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por leito de pedras grandes e enormes como ovos pré históricos.
2.
O segundo recurso é a economia de recursos para nos fazer visualizar o que está querendo dizer. Apesar de ser um escritor de frases e parágrafos enormes, muitas vezes cheio de adjetivos, as descrições são curtas e suficientes para mostrar o que pretende.
Ele diz, logo no início também, que o chefe dos ciganos era um homem corpulento com mãos de pardal. É tudo o que ele precisa para dizer que o cigano Melquíades, que terá papel central no livro, é um homem bruto de bom coração.
3.
O terceiro recurso, ligado a a esse, tem a ver com a precisão dos detalhes com a palavra certa que nos faz ver a cena, mesmo com o uso de poucos recursos narrativos. No curso de roteiro que deu em Cuba, ele ensinou que se deve descrever a cena de forma que o leitor possa sentir até o cheiro do ambiente.
Em Cem Anos, é quase possível ver as flores amarelas brotando sob o sol entre as ranhuras de um velho galeão carcomido pelo tempo numa praia abandomada.
Na mais bem narradas cenas, é difícil não se levar pela carga dramática e visual do fuzilamento de uma multidão em desespero, correndo em redemoinho para fugir do “matraquear lento e contínuo da metralhadora”, como se “descascada como uma laranja”.
4
Um quarto recurso que fascinou, porque talvez tenha sido a primeira vez com que tomei contato, foi o gancho sem medo de anunciar o destino do protagonista logo no início. Ora, não tiraria o sabor da história se sabemos logo de cara o que vai acontecer?
Muito pelo contrário, e ele faz isso várias vezes. O início, magistral, um dos melhores da literatura, me pegou no contra pé logo de cara:
- Muitos anos depois, diante do pelotão do fuzilamento, o coronel Aureliano Buendia se lembraria do dia em que o pai o levou para conhecer o rio. Macondo era…
Você sabe de cara que aquele menino inocente ali vai ser um guerreiro.
Em outro ponto, quando começa a narrar de fato a aventura desse menino adulto, abre um parágrafo em que já antecipa toda a sua trajetória, dali até a morte, da seguinte forma:
- O coronel Aureliano Buendía fez 32 revoluções e perdeu todas.
5.
O quinto recurso tem a ver com um tom geral de fatalismo que permeia todos os seus livros.
A ideia de que nada há por fazer diante do destino. O que para mim explica a narrativa contemplativa, sem intromissões e sem qualquer julgamento dos atos humanos, apesar da visão poética com que contempla o mundo e a solidão de seus personagens.
É curioso que essa narrativa tão poética seja tão racional para não se intrometer. E é certamente ela que vai dar o status de veracidade à àquelas maluquices, as conversas com os mortos, as borboletas que seguem uma virgem até sua levitação ao céu.
Foi a isso que deram o nome de realismo mágico.
Porque a narrativa é tão isenta e extraordinária que ela acaba com dar a essa mágica um elemento de realidade àquele mundo que constuiu, que é, como eu disse, o microcosmo da América Latina, o microcosmo do nosso mundo.
Ok. Não sei se consegui fazer você gostar e Cem Anos de solidão como eu, mas espero que você descubra um livro de cabeceira para chamar de seu, se ainda não o tem.
Vai te fazer um bem enorme, em todos os sentidos.
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