Você poderá ser um bom escritor sem ter lido Machado de Assis, mas será muito melhor se tiver lido e compreendido sua importância.
Não por ser de longe o maior escritor brasileiro — senão o único grande, segundo críticos mais severos — ou um dos maiores de língua portuguesa, mas dos maiores da literatura de todos os tempos.
Raro o crítico mundial importante do século XX que deixou de conhecê-lo. Alguns como Harold Bloom o colocaram na lista dos maiores de todos os tempos. Outros o puseram no mesmo patamar de Shakespeare, Cervantes, Eça de Queiroz.
Para minha compreensão de sua genialidade basta O Alienista, a pequena novela de 1891, escrita pela época de Memórias Póstumas de Brás Cubas, marco de sua entrada no realismo, depois de quatro obras românticas.
Assim como Crônica de uma Morte Anunciada não é a maior mas resume toda a arte de Garcia Marquez, O Alienista encapsula Machado, sua época, seu estilo e toda a sua visão debochada do mundo.
Ele é o próprio Simão Bacamarte, o médico que se descobre sem lugar num mundo que não lhe cabe.
Aos fatos.
Autorizado pela Câmara de Itaguaí a fazer estudos de psiquiatria, começa a recolher na Casa Verde os loucos de toda a ordem, dos mais varridos aos mais mansos.
Chega a tal refinamento de critérios que acaba por enjaular 75% da população, inclusive a esposa. Porque já considerava como suspeitos de desvio mental comportamentos banais como a dificuldade de escolher um vestido.
Apesar de protestos políticos liderados pelo barbeiro Porfírio, ele insiste nas internações até concluir que, se normal era o desvio de personalidade, a anormalidade seria os que mantinham padrões regulares de sensatez e caráter.
Solta então todos e passa a internar os que demonstrassem comportamento sensato e firmeza de caráter. O primeiro preso foi o vereador Galvão, que apoiara seus intentos e lhe parecera um exemplo de correção.
Ampliou de novo seus critérios para tal refinamento, que passou a recolher quem demonstrasse qualquer pequeno sinal de equilíbrio e a soltar por qualquer banal desvio de caráter.
Quando se deu pelo fato de que novo havia prendido quase toda a população, acometida agora por traços de sensatez em meio a uma névoa de loucura, concluiu que o conceito de normalidade era algo inalcansável.
Se o normal era a anormalidade, ele seria o único fora do padrão, o louco em questão. E recolheu-se a si mesmo.
Vejo Machado de Assis falando de si mesmo, o sujeito fora de seu lugar, de seu tempo, das certezas e ilusões de seus contemporâneos.
Ele viveu a era do cientificismo que sobrevinha à revolução industrial, da demanda por explicação científica em detrimento da verdade religiosa.
Era a época do determinismo de Darwin e do surgimento da psicanálise de Freud, diferentes caminhos para tentar explicar o homem sem Deus, pela compreensão dos determinantes do meio, por um, e da mente, pelo outro.
As rápidas mudanças em que tudo o que era sólido se desmanchava no ar, como escreveria Karl Marx, se insinuaram no Romantismo e culminaram no Realismo.
A narrativa minuciosa das circunstâncias com que os autores românticos tentavam explicar o homem por seus impulsos naturais evoluiu para a dos realistas que tentavam traduzi-lo a partir de suas circunstâncias e dos reflexos sociais do mundo em rápida transformação.
As diferentes correntes fizeram grandes escritores em cada uma delas, como José Alencar e Balzac, no primeiro caso, e Aluízio de Azevedo e Flaubert, no segundo. Mas Machado de Assis pairava acima de todos e de todas as tendências.
Um estilo como nenhum outro
Ele foi romântico quando jovem e realista depois, mas ambos a seu jeito.
Cronista e poeta ainda adolescente, publicou três livros de poemas até os 25 anos (nasceu em 1839) e quatro romances de pegada romântica até a maturidade: Ressureição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878).
Viria a rejeitá-los (“tinham um eco de mocidade e fé ingênua”) quando embrenhou pelos romances realistas, cujo marco inicial, de 1881, é Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Viriam Quincas Borba (1891), Casa Velha (1885), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).
Escola para a qual também tinha restrições. Sobre a narrativa seca e minuciosa de Eça de Queiroz, escreveu que “essa pintura, esse aroma de alcova, essa descrição minuciosa, quase técnica, das relações adúlteras, eis o mal”.
Sua genialidade está em que, absorvendo toda as tendências, esteve além delas e criou a sua própria. Transitava em todas para construir o estilo que se parecia com todas e com nenhuma.
Poeta, cronista, contista, romancista e teatrólogo, transitava por todos os estilos a ponto de zonzear seus críticos contemporâneos e futuros.
Foi clássico, romântico, realista, impressionista e moderno, transitando entre a concisão, a narrativa convencional, a objetividade, a evocação da memória, a elipse, a fragmentação.
Ao sagrado mandamento da objetividade narrativa ou naturalista, sobrepunha a liberdade de ir e vir na história. Contra a lei do narrador oculto, se intrometia para comentar, filosofar, contextualizar e intertextualizar.
“Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas
Tentado ser compreendido e enquadrado, como político, literato ou religioso aliado a qualquer tendência ou ideologia, era de fato um niilista que ria de tudo e a quem não cabia qualquer enquadramento.
Daí sua universidade, sua imortalidade e sua atualidade perene.
É quase impossível desqualificar a obra de Machado de Assis por qualquer de suas posições, como tentaram vários grandes críticos em diferentes épocas, depois de sua morte, 1908, e até hoje.
As tentativas de explicá-lo por seus rancores de classe, de mulato descendente de escravos, por seu elitismo ou seu machismo verbal contra suas heroínas se mostraram sempre falhas ou esbarraram no muro de sua zombaria sofisticada.
Lavrava tudo numa ironia fina o suficiente para mostrar a debilidade de tudo. Ria, num estilo objetivo, mordaz, enxuto, elegante e erudito que poucos textos mais modernos atingiriam.
Porque sua missão era entender o homem e suas motivações mais profundas, acima de qualquer modismo ou injunção circunstancial.
Ainda que povoasse suas obras dos conflitos sociais e políticos daquele século em erupção, não era determinista e nem religioso, mas só angustiado pela exploração do homem pelo homem.
Não é nada mais do que a grande literatura pode almejar para ser permanente. E um grande escritor para ser imortal.
(Aliás, fundou a Academia Brasileira de Letras e foi seu primeiro presidente, lembram?)
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