O principal a saber sobre Aghata Christie é que levou à excelência o mais excitante recurso de suspense: o “quem matou?”
Em 66 romances, 20 coletâneas de conto e 19 peças de teatro, se pôs a refinar o modelo que lhe deu fama e fortuna.
Vendeu mais do que Shakespeare e a a Bíblia e inspirou uma geração de escritores e roteiristas.
Não é exagero dizer que tem sempre um pouco dela e de seu “quem matou?” em cada história de morte na literatura, no cinema ou na TV.
Ainda que possa ter a mesma competência, não há escritor conhecido que tenha levado a tal potência a arte de segurar o leitor até a última linha e o espectador na ponta da cadeira até os créditos finais.
É uma carpintaria simples mas engenhosa, quase matemática, de costurar personagens encantadores em torno de um mistério comum e não deixar pistas que possam antecipar o prazer da descoberta final.
Veja-se o engenho de O Caso dos Dez Negrinhos (E não Sobrou Nenhum, na tradução politicamente correta), de 1939, seu livro mais vendido em todos os tempos.
Dez figuras de diferentes classes sociais, convidadas para uma estadia na ilha de uma antiga conhecida em comum, de que a maioria já não se lembra, encontram um poema infantil em cada cabeceira:
Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;
Primeira tradução brasileira, de Leonel Vallandro
Um deles se engasgou e então ficaram nove.
Nove negrinhos sem dormir: não é biscoito!
Um deles cai no sono, e então ficaram oito.
Oito negrinhos vão a Devon de charrete;
Um não quis mais voltar, e então ficaram sete.
Sete negrinhos vão rachar lenha, mas eis
Que um deles se corta, e então ficaram seis.
Seis negrinhos de uma colmeia fazem brinco;
A um pica uma abelha, e então ficaram cinco.
Cinco negrinhos no foro, a tomar os ares;
Um ali foi julgado, e então ficaram dois pares.
Quatro negrinhos no mar; a um tragou de vez.
O arenque defumado, e então ficaram três.
Três negrinhos passeando no Zoo. E depois?
O urso abraçou um, e então ficaram dois.
Dois negrinhos brincando ao sol, sem medo algum;
Um deles se queimou, e então ficou só um.
Um negrinho aqui está a sós, apenas um;
Ele então se enforcou, e não ficou nenhum.
É uma pista de que como se dará cada uma morte, sem que haja um detetive, e quase nenhuma de quem pode estar por trás, quem é o último. E por quê.
Quando o escreveu, em 1939, já tinha 19 de estrada, 39 de vida e alguns sucessos que já haviam lhe dado a fama de a grande dama do crime.
Já tinha projetado suas personagens mais amadas:
– o detetive dedutivo Hercule Poirot, de seu livro de estreia, O Misterioso Caso de Styles, de 1920, e seu contraponto,
– a solteirona Miss Marple, que descobria crimes com base em seu conhecimento da natureza humana, estreia em Crime na casa do Pastor, de 1930.
Já conhecera a fama em 1926, com seu primeiro best-sellers, O Assassinato de Roger Ackroid, catapultado pela estranha história real de seu desaparecimento e posterior descoberta num hotel de luxo, onde se hospedara com o nome da amante do marido.
(Viria a se casar com um arqueólogo 14 anos mais jovem, com quem viajaria para o Oriente, ambiente de alguns de seus livros na maturidade.)
Já tinha também ultrapassado as fronteiras da Inglaterra com sua obra mais famosa, Assassinato no Oriente Express, de 1934, outro caso de vários suspeitos (12) num mesmo ambiente e sem pistas definíveis até o final.
Referência quase icônica de filme de suspense, viria a ser adaptado duas vezes para o cinema, como tantas outras histórias de Poirot e Miss Marple o foram para a TV.
Maquinaria da narrativa
Nascida em classe média alta de pais americanos, em Torquay, Devon, em 1990, lia Charles Dickens e Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, o detetive que pode ter sido a inspiração de Poirot.
Atribui-se à sua irmã Maggie a pressão por escrever um livro como Conan Doyle, resultado de sua estreia em 1920, depois de quatro anos de sofrimento polindo o texto, como conta em sua autobiografia.
De Dickens, ela não conta, mas certamente tem relação com sua preferência por casarões e conflitos de classe da Inglaterra do início da era industrial, que ele traduziu em seus livros.
No que ela passava de raspão, mais preocupada com a construção de mistérios em torno de inveja e vingança em heranças familiares.
Seu estilo quase matemático, em que a maquinaria da narrativa na construção do suspense se sobrepunha ao interesse por uma construção mais profunda dos personagens, acabou superado.
Nunca vai deixar de ser a grande precursora do “quem matou?”, mas o romance policial moderno avançou para personagens mais complexos, menos esquemáticos, de maior densidade psicológica.
Clarice Lispector, Rubens Fonseca, Patrícia Highsmith, Patrícia Cornwell e P. D. James, entre outros, a saúdam.
Os livros mais amados
O site oficial de Aghata Christie fez em 2015 uma enquete sobre os dez livros mais amados da escritora. Quinze mil fãs ao redor do mundo responderam, pela ordem:
- O Caso dos Dez Negrinhos (1939)
- Assassinato no Oriente Express (1934)
- O Assassinato de Roger Ackroid (1926)
- Morte no Nilo (1937)
- Os Crimes ABC (1936)
- Convite para Um Homicídio (1950)
- Testemunha Ocular do Crime (1957)
- Morte na Praia (1941)
- Os Cinco Porquinhos (1942)
- Cai o Pano – O Último Caso de Hercule Poirot)
O Caso dos Dez Negrinhos virou E Não Sobrou Nenhum na mais recente tradução brasileira da Globo Livros (Renato Marques de Oliveira), que tenta estuprar a imagem de uma senhora que viveu na era vitoriana, com seus valores e preconceitos. Os dez negrinhos viraram dez soldadinhos em referência ao nome da ilha, também modificada de Ilha do Negro para Ilha do Soldado.
Um tipo de crime contra uma obra paradigmática dos romances de mistério, que merecia uma história de horror de um autor tão competente como Aghata.
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