Se todo mundo começa imitando em qualquer ofício, sobretudo no de escrever com criatividade, quem imitei?
Quais foram as minhas influências e como acabei construindo minha identidade numa mistura de todas elas?
Como escrevi no artigo Por que começar imitando é a melhor forma de você construir sua identidade, os criadores consolidam seu estilo depois na soma e mescla de todas as influências que teve.
Então, quais foram as minhas?
Aos 28 anos, eu ainda tateava na literatura, meio bêbado por um caldeirão de influências, mas já descobrindo meu próprio caminho, a ponto de já confundir quem ousasse me interpretar.
O escritor e biógrafo de Carlos Drummond de Andrade, José Maria Cançado, escreveu no prefácio do meu segundo livro, O Camaleão no Abismo, que “este livro se parece com todos e nenhum”.
Era ainda um caldeirão de influências, onde se percebia um pouco de muitos escritores, mas que esboçava um estilo na costura de todas elas.
Que vinham de longe e conto aqui, num exercício de autobiografia que recomendo a quem quer descobrir o seu propósito de vida.
Jornalismo e novela
Minha lembrança mais remota me remete ao jornal radiofônico mais famoso dos anos 40 e 50 do século passado, transformado em boletim de TV, no final dos 60, na já decadente TV Tupi.
Menino, sentado no chão da sala, acompanhava meu pai em certo transe catalítico diante da metralhadora giratória do locutor Gontijo Teodoro, que trouxera do rádio o mesmo estilo de metralhadora sem imagens.
Olhando de longe, me pergunto hoje se eu não estava interessado menos nele do que em meu pai.
Mesmerizado diante daquele velho aparelho em P&B, se remexia nos braços da cadeira de palhinha ao ritmo da gravidade das notícias, a partir das 8h em ponto de todas as noites.
(Não desconsidere a influência das pessoas que você quer agradar ao seu redor como definidoras de suas preferências inconscientes.)
Na rua, na escola primária e mesmo na loja em que eu trabalhava de calças curtas, eu já redigia jornaiszinhos na linguagem objetiva do apresentador.
O estilo viria a ficar mais dramático, ali e nos jornais da escola, com os artigos ufanistas de David Nasser, também transpostos oral e inadequadamente da revista Manchete para a TV, minutos antes do Repórter Esso.
As primeiras influências de literatura viriam em seguida das novelas da Globo, que começavam a explodir em audiência e qualidade nos anos 70.
A televisão havia atraído os principais teatrólogos do país, que conseguiam transpor para linguagem popular a saga dos heróis densos que só parecia possível só na elucubração das três paredes do palco.
Dias Gomes, o protomestre da empreitada que incluía Bráulio Pedroso, Lauro César Muniz e Jorge Andrade, deu vida a grandes protagonistas como o Tucão de Bandeira Dois e o Odorico Paraguassu de O Bem Amado.
Sua mulher Janete Clair, dona de casa influenciada já na maturidade por Agatha Christie e a noveleira mexicana Gloria Magadan, antecedera o marido na construção de grandes galãs e heroínas de amores impossíveis.
Sua Irmãos Coragem, um faroeste brasileiro sobre um garimpeiro que descobre a pedra de sua vida, para desgraça de toda a família, foi em 1970 a precursora do fenômeno que iria dar fama e fortuna à TV Globo, dali para sempre.
Eu ainda não tinha maturidade para entender o profundo impacto cultural das novelas, mas, vendo de longe, percebo o quando me impactava o poder daquela narrativa para manter presas na sala as pessoas que eu desejava agradar, mãe, vizinhos, patrão.
Me lembro de estar aí pelos 17 anos, no meio daquela década, quando minha irmã me pegou escrevendo um texto longo a lápis, com a fluência de quem narrava um Repórter Esso.
Perguntado do que se tratava, respondi com uma convicção que hoje me parece ousada para a idade:
— Estou escrevendo uma adaptação de Incidente em Antares para a televisão.
Já estava me transpondo da influência das novelas para a dos romances em livro, sem perceber ainda que estava sendo empurrado para eles por influência delas.
A história de Érico Veríssimo, sobre mortos que ressuscitam em meio a uma greve de coveiros, me impressionava pela cadeia de conflitos econômicos e emocionais, mas sobretudo políticos.
Curioso que não sentia qualquer atração pelo estilo Glória Magadan de Janete Clair, de personagens envolvidos em seus dramas pessoais.
Incidente em Antares tinha muito do universo político e um tanto militante de Dias Gomes, de longe a mais marcante de minhas primeiras influências.
Tanto que O Tempo e o Vento, a grande saga que fez a fama do escritor gaúcho, não teve qualquer influência sobre mim.
Era um tipo de dramalhão que ecoava na obra de Janete Clair, que por sinal o adaptou para a TV, e nada na do marido Dias Gomes, de estilo totalmente adverso ao dela.
Das novelas aos livros, me lembro de ter sido impactado em seguida pela leveza dos textos de Fernando Sabino e de como ele poderia ser leve e profundo ao mesmo tempo.
Leveza e densidade nos livros
A obra mais influente de sua/minha geração, o Encontro Marcado, desliza por parágrafos curtos nas altas reflexões existenciais de quatro adolescentes embevecidos de literatura e do desejo de entender o mundo.
É algo que, percebo hoje, coincide com meu interesse por Dias Gomes. Não deve ter tido outro brasileiro que conseguiu levar entretenimento e reflexão de alta potência a grandes massas sem apelar a facilidades.
A narrativa leve e diálogos curtos de Fernando Sabino era uma quase fórmula de entretenimento e coincidia com a que seria minha outra influência importante a seguir.
Carlos Eduardo Novaes publicava sátiras da vida política de alta repercussão no Jornal do Brasil, então referência intelectual à época.
Tanto ele quanto o jornal iriam influenciar tudo o que eu publicava no meu próprio jornal, instalado com maquinário e tudo no final dos anos 70, em minha pequena Muriaé. (É uma longa história, para outra hora.)
Escrevia notícias e editoriais como o Jornal do Brasil e uma coluna de sucesso em minha cidade imitando de forma acintosa Novaes. Transpunha muitas de suas sátiras para a realidade política local, com tão boa repercussão local quanto as dele em nível nacional.
A ironia fina, marcante nas sátiras políticas de Dias Gomes e nas crônicas de Novaes e Sabino, era outro traço que viria a ser reforçado em seguida pela fase Luís Fernando Veríssimo.
Li tudo o que publicou desde que surgiu como fenômeno no mesmo Jornal do Brasil, no final dos 70, transformado em coletâneas de livro que guardei por longo tempo num canto especial da estante.
Absolutamente estranho ao estilo do pai, Érico, conseguia ser mais cristalino que Sabino e agregava ao trato do cotidiano característico da crônica um toque de absurdo e transcendência debochada que namorava mais com a literatura do que com o jornalismo.
Publicitário de origem, obrigado ao exercício das frases curtas, amargou toda a vida a frustração de não ter escrito um romance. Nunca tive dúvida de que exercitava naquelas peças semanais, carregadas de absurdo existencial, a tentativa nunca revogada de um romance inteiro.
Escreveu um suspense frágil, o Clube dos Anjos, assim como Fernando Sabino publicara à época O Grande Mentecapto, uma sátira de menores pretensões a Dom Quixote e grandes tentações literárias.
Vinha de um jejum de quase 30 anos depois de O Encontro Marcado, militando em crônicas nos grandes jornais brasileiros.
Tentavam ambos aplacar a frustração da grande literatura, como se martelassem o conselho que Fernando Sabino ruía desde que ouvira de Guimarães Rosa, lá pelo final dos 60.
O genial autor da pirâmide que foi a construção de Grande Sertão: Veredas, como tantos escritores do seu porte, achava a crônica um gênero menor, ensaio para empreitadas maiores. Biscoitos.
— Não faça biscoitos, faça pirâmides — lhe disse.
A tentação da literatura
Já por influência forte deles, eu também tinha as mesmas tentações. Queria saltar das crônicas de jornal, reunidas num livro de 1983 (A Pintinha Negra), para a alta literatura.
Caí na de alta qualidade de Rubem Fonseca, contista de histórias policiais sobre a realidade crua do submundo do Rio de Janeiro, num texto preciso e cortante como bisturi.
Mas, vai-se ver, na mesma lógica do que me influenciava.
Tinha em comum com meus influenciadores até então a competência para ser denso e acessível a maiores públicos, uma obsessão que iria me perseguir pela vida toda.
A partir dos três e de suas/minhas obsessões, fui beber na fonte de Gabriel Garcia Marquez, escritor inevitável para quem viveu os anos 70 de afirmação da América Latina no cenário literário mundial.
Marquez havia inventado o regionalismo mágico, na obra que viria ser considerada umas da maiores da humanidade e lhe deu o Nobel.
Cem Anos de Solidão era genial por esculpir verdades universais a partir de uma aldeia de pobres diabos nos confins da Colômbia e dar autenticidade a fantasias de seus personagens, tomadas como realidade num continente visto de fora como místico e atrasado.
O que me encantava nele, porém, era a carpintaria do texto, cristalino como me convinha, embora langoroso e um tanto melodramático, cujo maior exemplo é o encantador Amor nos Tempos do Cólera. Mas altamente poético.
Disse certa vez que gostava de escrever como se estivesse compondo um bolero de Nelson Ned, o cantor brasileiro que ganhou fama nessa América e no México com esse ritmo de amores desbragados.
Era inevitável, o cheio das amêndoas amargas lembrava-lhe sempre o destino dos amores contrariados.
Primeira frase de O Amor nos Tempos do Cólera
Marquez numa teve problema em usar o que os escritores profissionais abominam, os adjetivos. Mas os utilizava com tal parcimônia e precisão, que soavam inevitáveis.
Macondo era então um povoado de 20 casas de barro e taquara às margens de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras brancas e redondas como ovos pré-históricos.
Todos os anos, pelo mês de março, uma trupe de ciganos estropiados plantavam sua tenda na cabeceira do rio e davam a conhecer as novidades do novo mundo…
Das primeiras frases de Cem Anos de Solidão
Usar adjetivos não foi felizmente o principal que aprendi dele, mas o que ele ensinou em uma de suas aulas de roteiro em Cuba.
A de que o texto envolvente deve descrever de tal forma o cenário, precisa e detalhada, que se possa sentir até o cheiro.
Marquez também era jornalista, talvez o primeiro a utilizar recursos literários na profissão, como fez na reportagem em capítulos que lhe deu a primeira fama: Relato de um Náufrago.
Sua capacidade de ter acrescentado à experiência de repórter o valor da descrição literária pode explicar muito de minhas tentações à época e do estilo que acabei por consolidar.
Seu melhor livro para mim, apesar de manter por bom tempo na cabeceira Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera, é uma narrativa jornalística de alto sabor literário.
Crônica de uma Morte Anunciada é o relato supremo de um escritor genial que subverteu todas as regras dos livros de suspense policial que faziam sucesso a seu tempo, mas vistos de nariz torcido pelos escritores respeitáveis.
Além do estilo de crônica jornalística e da narrativa em três tempos que se alternam, contrária à linearidade peculiar do estilo, já começava revelando quem vai morrer e quem vai matar.
Quebrava já de cara uma das regras básicas dos escritores consagrados do estilo — Aghata Cristhie, Edgar Alan Poe, Arthur Conan Doyle —. de esticar essas revelações centrais da trama até, se possível, a última linha.
No dia em que o matariam, Santiago Nasar acordou…
Primeira frase de Crônica de uma Morte Anunciada
Esse texto langoroso de bolero parece contraditório com a limpeza dos textos e a pitada de ironia que me atraíram em Dias Gomes, passando por Novaes, Sabino e Veríssimo.
Hoje, tenho consciência, porém, de que ele me acrescentou o tom poético que os escritores mais sofisticados e resenhistas de jornal desprezavam, mas de cuja eficácia nunca duvidei.
Para estes, a poesia fria e quase milimétrica de um João de Cabral de Melo Neto era algumas vezes superior à um tanto dramática do mais famoso dos poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade.
Minha identidade literária
Certa ou não, essa mistura foi exercitada aos trombolhões em O Camaleão no Abismo, de 1986, um sujeito em busca de seu sentido tropeçando em suas paixões femininas ou literárias como explicação de existência.
O próprio título remete à ideia do animal que toma a cor do ambiente em que está. Incorpora visão e estilo das mulheres e dos autores que amava.
Foi se tornar mais consistente só 24 anos depois, em O Presidente Vai Morrer (originalmente O Dossiê Rubicão), de 2010, romance histórico costurado na ficção de um foca obcecado pelo furo de reportagem que ninguém quer dar: o presidente eleito que pode salvar o país depois do trauma da ditadura tem uma doença grave e pode não tomar posse.
Sem tanta ironia como eu pretendia, mas tanto quanto possível vazado nela, pode ser visto bem como um compêndio de minhas influências: a tração romanesca da literatura para disfarçar a objetividade jornalística em busca de fluência e transcendência, ainda que tratando de temas calcados na realidade.
Ou, visto de outra forma: a tração fluente da narrativa jornalística a serviço da transcendência do texto romanesco, calcada em fatos reais.
Bebe na fonte do jornalismo literário e procura transcendê-lo, na medida em que, mesmo calcado em fatos reais, procura se desgarrar deles. Criar personagens fictícios a partir dos reais.
Uma tração que permeia o estilo dos grandes jornalistas escritores e que foram se impregnando ao meu, mesmo depois de experiente e de identidade a meu ver já consolidada. Por ordem alfabética:
- O Gay Talese de Honra Teu Pai.
- A Isabel Allende de A Casa dos Espíritos.
- O Ken Follet de O Buraco da Agulha.
- O Tom Wolfe a A Fogueira das Vaidades.
- O Truman Capote de A Sangue Frio.
Não se esquecer que o maior desses como influência, Garcia Marquez, cresceu como jornalista literário até se despregar da cruz da objetividade e se desbragar nos dramáticos Cem Anos e tantos outros antes de O Amor…
Como imitamos ou somos influenciados até a morte, ocorre, ainda que raro, de me descobrir fascinado por um novo grande autor e influenciado por seu estilo em meus artigos.
Alguém de alguma competência rara que ainda não atingi, como Malcolm Gladwell, repórter da sofisticada The New Yorker, de ficção e jornalístico ensaístico, útero por quase 100 anos de grandes escritores americanos.
Como seus grandes antecessores no espaço, é capaz de transformar numa aventura de conhecimento a reportagem, o ensaio ou o relato jornalístico do tema mais banal.
É capaz de gastar quase 20 páginas de uma escrita sofisticada para tentar explicar cientificamente o gosto do ketchup e por que motivações profundas fazem com que o gosto de determinada marca agrade mais que outras.
Sua abordagem da história da tintura para cabelo e das estratégias de marketing que a cercaram é um passeio antropológico pelas mudanças de comportamento dos americanos nos últimos 50 anos do século XX.
Para desmontar a farsa do governo para justificar o bombardeio ao que seria uma central de armas nucleares no Iraque, ele investiga problemas de interpretação que põe em questão a validade de fotos, mamografias e mísseis de longo alcance.
Em O que se passa na Cabeça dos Cachorros, a coletânea de 19 ensaios que o projetou mundialmente, mergulha na mente e no que chama de “fraseado corporal” do maior adestrador de cães do mundo e uma das maiores audiências da TV americana.
O que parece ser apenas uma aventura para se conhecer o que se passa na mente dos cachorros mais ferozes ou desastrados em processos de adestramento é, por fim, uma aula de comunicação, de recursos de interação para comunicadores.
Sua capacidade para extrair até o cheio de ketchups e tinturas de cabelo me remete a aula de Garcia Marquez sobre descrição pormenorizada do ambiente. E sua quase transcendência ao desmontar cachorros e mamografias me remete a quase tudo o que aprendi na crônica dos meus influenciadores. E algo mais.
Relendo-o, vejo que melhora quase tudo o que aprendi e não poderia deixar de ser incorporado a meu compêndio de influências.
Consciente ou inconscientemente. Que é forma mais consistente de as coisas do mundo se incorporarem na nossa identidade.
[…] Embora também preocupado com o tamanho das frases, sempre namorei o estilo langoroso de bolero de Nelson Ned em Garcia Marquez, como conto em Minhas Influências Quem imitei e quem inspirou minha identidade literária. […]