É fácil entender porque Democracia em Vertigem ganhou repercussão nacional e indicação de documentário ao Oscar.
Para além da propaganda paga ou gratuita alimentada pela polêmica, é um grande filme que embrulhou bem uma tese que faz sentido em elementos de narrativa ficcional.
O que não quer dizer que seja verdadeiro. Senão, vejamos.
Comprovadamente grande cineasta, a diretora Petra Costa envasou bem o peixe de que um grupo de homens heterossexuais brancos conservadores e venais de uma cidade apodrecida, num país esgarçado, que derrubaram por um motivo banal uma mulher do cargo para a qual fora eleita pela maioria da sociedade.
É uma tese de alta capacidade de convencimento que ecoou mesmo entre os puros de coração, sem paixão partidária ou contaminação ideológica. É só ver a cara e os interesses subterrâneos dos tubarões que se agarraram à firula contábil que a derrubou: Aécio Neves, Eduardo Cunha e Michel Temer.
E ganhou contornos mais verossímeis, envolventes e até emocionais, na capacidade da cineasta de costurar os fatos em camadas de evidências e cenas exclusivas da intimidade da protagonista abatida, em momentos cruciais da narrativa, graças a seu trânsito familiar com ela.
O que não quer dizer que tenha falado a verdade. Ou que a verdade que construiu seja honesta, a não ser com ela mesma.
O documentário é um encadeamento de suas frustrações pessoais, seus conflitos e idiossincrasias, por ver desabar, uma a uma, as cartas em que ela e sua mãe, militante amiga de infância da presidente derrubada, apostaram suas juventudes.
Para isso, ela amplia o tamanho do sonho em que acreditavam, um país socialista comandado por um messias do proletariado que levaria o povo à terra prometida.
Para ampliar a dimensão do tombo quando caem dele, sempre por culpa do mundo mau dos homens ruins que está sempre fora de suas constelações.
Seu líder proletário e seu projeto são o lado bom, o príncipe encantado sem chances diante dos dragões da maldade.
Esse é um grande material de grandes obras dramáticas, ficcionais ou não, que mereceria o devido crédito se não estivesse tramitando no terreno minado da ideologia e da política partidária.
Fora delas, toda grande história contada em livro ou filme acompanha o herói que se vê fora do lugar num mundo que não entende. Aposta suas ilusões diante das adversidades da vida e volta para a casa com nova lição moral.
Democracia em Vertigem é outra jornada do herói de outro príncipe encantado, edulcorado diante de um mundo adverso, mas é principalmente a jornada de Petra Costa. Que por sua vez encarna e tenta entender a jornada da mãe, das ilusões ao retorno frustrado para casa.
Para obter o efeito, como em todo livro ou roteiro bem engendrado, é preciso carregar nas tintas da inocência do herói e em igual medida na maldade de seus antagonistas. Para dar verossimilhança à verdade construída do herói, é preciso também limar cenas, frases e fatos que possam comprometer sua inocência.
O filme encadeia um monte de fatos indiscutíveis de um lado só e passa de raspão por fatos cruciais delicados que desmontariam sua narrativa.
Tanto que reduz a algumas frases de coxia o monumental empreendimento de corrupção e ineficiência que marcaram os governos liderados por seu príncipe proletário, culpados de fato por derrubar seu castelo de sonhos.
O Mensalão, que bem explicado desestruturaria toda essa construção, é reduzido a uma frase em que se diz que o partido do presidente fora acusado de comprar votos para garantir a governabilidade.
Assim como o Petrolão, que aparece numa frase já na derrocada de Dilma como um elemento desestabilizador, como se fosse coisa nova, mas não causa de longo prazo de um modelo de governança que teria desmoralizado seu príncipe encantado e a amiga de sua mãe.
Personagens inconvenientes a esse enredo, como Roberto Jefferson, José Dirceu e Joaquim Barbosa, simplesmente desaparecem.
Para tingir o mundo mau diante da inocência de seu herói e sua heroína, volta 70 anos para buscar a causa de suas tragédias no formato arquitetônico de Brasília e nas relações espúrias das empreiteiras com os governos, “décadas após décadas”. Até seu avô, um dos fundadores de uma das maiores delas, a Andrade Gutierrez, entra no papel de vilão.
A opção do documentário
Em seu canal no Youtube, Reinaldo Azevedo ensina que não existe documentário isento. É um produto de escolhas do diretor de determinado encaminhamento dos fatos, frases e imagens, para montar sua tese.
Dá para fazer uma lista enorme das opções de Petra no documentário, de fatos, frases e imagens, para realçar certa honorabilidade de seus protagonistas e o ridículo de seus adversários. Quando não simplesmente apaga personagens inconvenientes.
Claro que ela escolhe os momentos melhores e mais emocionais de Lula e Dilma e os mais desagradáveis de, por exemplo, Aécio, Michel Temer, Janaína Paschoal, a autora do pedido de impeachment. Opõe populares à esquerda defendendo a nobreza da democracia a pobres diabos da direita fazendo proselitismo pela volta da ditadura militar.
Reinaldo cita o caso recente e ululante do documentário que santifica Olavo de Carvalho (O Jardim das Aflições, de Josias Teófilo), a que acrescento o 1964 – O Brasil Entre Armas e Livros, do grupo militante de direita Brasil Paralelo, ou mesmo os contundentes de nosso melhor documentarista político, Sílvio Tendler.
Ter optado por documentário, porém, revela muito de suas intenções e suscita outra questão de honestidade artística.
O cineasta que deixa de fazer uma ficção para colocar suas ideais num documentário está de certa forma apostando na credibilidade que cerca o modelo.
Temos a tendência a dar estatuto de documento histórico a documentários pelo fato de encadearem fatos reais.
Petra Costa poderia estar convencida de que venderia seu peixe com mais facilidade, que o público teria mais predisposição de aceitar suas teses se estivessem envolucradas na narração aparentemente isenta dos fatos da história, como fazem as reportagens de jornal.
Talvez achando, com razão, que ficções também podem não ser totalmente verdadeiras.
- No lindo Dois Papas, de Fernando Meirelles, que também concorre ao Oscar pela Netflix, o competente e oscarizável roteirista Anthony McCarten inventa conversas que não houve para defender sua tese.
- A estupenda série The Crown, sobre o reinando de Elizabeth II da Inglaterra, ficcionaliza fatos reais com objetivos idem.
- Idem ibidem no caso de O Mecanismo, a de José Padilha sobre a operação Lava Jato, que foi contra o mundo de Petra na primeira temporada e a favor de sua tese, na segunda.
Chama-se isso liberdade poética, sempre perigosa em obra política e sobretudo conjuntural, quando os nervos da sociedade envolvida ainda estão à flor da pele. Têm menos risco quando tratam do passado mais distante, em que algumas ideias já foram sedimentadas ou aceitas.
Que se pode chamar também de desculpa. Quando a soma do grude pega mal e mascara más intenções do autor, ele pode sempre dizer que se trata apenas de… “uma liberdade poética”.
A autores de documentários, entretanto, não não se dá o benefício desse estratagema e da dúvida. Com o seu óbvio encadeamento de fatos, fica difícil para Petra dizer que se trata apenas de… “uma liberdade poética”.
O que não dizer, por fim, que ela não tenha sido honesta consigo mesma e não tenha o direito de defender suas ideias.
Seu documentário tem que ser visto como uma tese, a dela, restrito a seu campo de opinião e devidamente aberto à opinião contrária. “Quem discorda, que faça outro”, diz Reinaldo.
Ele discorda em muita coisa da abordagem dela, mas sua crítica visa o chefe da Secom, Fábio Wajngarten, por ter utilizado o aparato estatal para criticar as posições da cineasta em entrevista a uma TV americana. (Veja o vídeo no final.)
O Estado não pode tomar partido, se intrometer no que diz um artista, onde e quando. Deve, acrescento, apenas garantir espaço de liberdade para que qualquer cidadão, de qualquer opinião diferente da sua, diga o que quiser, quando e onde.
O que quer dizer que Petra Costa também pode defender livremente suas ideias em público, em celulóide ou streaming, em documentário ou drama ficcional.
E tem o direito de tomar as liberdades poéticas que desejar. Nós, no sofá, é que temos que aprender a separar o fatos de opiniões. E tentar, como disse Reinaldo, fazer outro, se tivermos opinião diferente e a mesma competência que ela teve.
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